50º Gramado (2022) – “A Mãe”
Intensidades controladas
Por Ivonete Pinto | 13.08.2022 (sábado)
Cristiano Burlan é um diretor intenso. Ligado umbilicalmente aos temas que aborda, imprime uma verdade factual que transborda na tela. Mesmo quando faz ficção, o real é matéria- prima que alimenta as histórias contadas.
Não é diferente com sua estreia em Gramado como cineasta. A Mãe, exibido no primeiro dia do festival de cinema de Gramado, confirma sua predileção para falar de um universo que conhece bem. A produção é centrada em personagens da periferia de São Paulo (o Jardim Romano, circundado pelo rio Tietê), habitados por pessoas à margem, desassistidas pelos governos, que se veem amparadas pelo crime e pela religião e sistematicamente violentadas pelo Estado.
O jovem Valdo (Dunstin Farias), um cara de bem, artista que produz filosofia através de letras de rap, é a vítima da polícia que mata sem nenhum constrangimento. Cabe à mãe, vivida por Marcélia Cartaxo, indignar-se e buscar a verdade sobre o desaparecimento do filho. Uma verdade que, diga-se, ela resiste em aceitar.
Questões raciais, como não poderia deixar de ser, estão presentes pontualmente na figura do amigo e da mãe deste e nas artérias das imagens. Mas Burlan, homem branco cuja origem periférica já explorou em filmes como Mataram meu irmão e Elegia de um Crime, demonstra que também é preciso retratar a violência que atinge a população pobre como um todo, mesmo que com outra dimensão.
Numa primeira visada, e em ritmo de festival, não será possível aprofundar aspectos como este,, que precisam de tempo maior de reflexão. Tempo inclusive para maturar interpretações sobre algumas imagens do filme particularmente ricas, como o cadáver que a mãe precisa identificar no necrotério. A opção de enquadrá-lo em plano aberto resulta em claro acerto, testando a capacidade de observação do espectador.
Vale registrar aqui que Burlan, agora sob a batuta do produtor Ivan Matos, quem provavelmente lhe ofereceu condições melhores de produção, arriscou-se numa ficção , que requer uma dramaturgia própria e códigos de encenação que talvez não funcionem. Por exemplo, Marcela cartaxo, na chuva, cavando um buraco e gritando até mais não poder, rende certas problematizações. Burlan, no entanto, se sai muito bem em algo que diretores nem sempre conseguem, que é investir na progressão mental/comportamental de uma personagem. O desespero desta mãe vai num crescendo, que inclui a cenas catártica onde xinga o policial civil (um delegado?) com todos os vitupérios que conhece.
Burlan também consegue extrair o máximo das imagens. A progressão do estado da mãe. Quando uma panela de pressão aparece em primeiro plano, não é gratuito. Por sinal, o feijão ganha mais uma homenagem à antológica cena de Fernanda Montenegro catando os grãos em Eles não usam Black-tie, de Leon Hirszman. Toda cenografia, e em especial o pátio da casa cheio de restos (Karla Salvoni), somada ao armazém precário, o esgoto a céu aberto no Jardim Romano, são explorados na fotografia (André Brandão) ao ponto de quase sentirmos o cheiro.
Também é preciso registrar o trabalho de direção na atuação de Cartaxo, como Maria, a protagonista. Atriz que dispensa apresentações, e que aqui mesmo em Gramado ganhou o kikito de melhor melhor atriz por Pacarrete. Sua tendência que beira ao histriônico, parece ter sido habilmente administrada por Burlan. É que assim como o diretor, Cartaxo é intensa e se entrega à personagens com as vísceras à mostra.
E sua compreensão da pobreza evidentemente é um componente que constrói o filme. Diferente da relação de Burlan com um ator como Jean-Claude Bernardet, que só em raras vezes pôde se desvencilhar de sua persona, Cartaxo introjeta uma mãe que não é ela, mas que pode ser todas as mães que sofrem perdas irreparáveis (o nome Maria carrega um sentido óbvio neste sentido) e que estão sós para lidar com sua dor. A dramaturgia universal é pródiga nesta personagem, mas Burlan, no cinema brasileiro composto predominantemente de diretores classe-média (e a questão de classe naturalmente está na essência dos seus filmes), entrega uma reflexão que vem autenticada. Ele não precisa de tradutores, sua biografia lhe dá lastro para falar do real em relação aos desprivilegiados
Não bastasse isto, o filme também se apoia em participações de atores sociais, com destaque para Débora, uma mãe que teve o filho assassinado pela polícia com seu depoimento orgânico à narrativa.
São rápidos apontamentos sobre um filme que merece muito mais, porém que vale este registro à quente.
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