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Festivais

50º Gramado (2022) – “A Porta ao Lado”

Júlia Rezende provoca Gramado falando da fragilidade de algumas certezas

Por Luiz Joaquim | 17.08.2022 (quarta-feira)

– Letícia Colin apresenta A porta do lado no Palácio dos Festivais, em foto de Edson Vara/Agência Pressphoto.

GRAMADO (RS) – O Palácio dos Festivais foi ontem (16) o berço de nascimento do novo filme de Júlia Rezende, A porta ao lado, integrando a competitiva de longas-metragens deste 50º Festival de Cinema de Gramado.

Curioso observar que – e não estamos sendo taxativos aqui – a filmografia de Júlia Rezende na direção parece alternar (ou quase isso) entre uma produção com apelo cômico mais popular, desde Meu passado me condena (2012), com produções de interesse investigativo mais autoral, mas sem deixar de lado também uma sedução popular ainda que apresentando proposições mais verticais, como Ponte aérea (2015).

O novo A porta ao lado, repetindo a parceria de 2015 com Letícia Collins como protagonista, apresenta-se como o filme da vez na autoralidade, considerando essa alternância aparentemente involuntária (ou não) da diretora.

O roteirista L. G. Bayão, que também é um parceiro de Rezende (coassinaram Ponte aérea), desta vez está acompanhado por Patrícia Corso na escrita que construiu os personagens Mari (Letícia Colin), seu marido Rafa (Dan Ferreira) e seus novos vizinhos Isis (Bárbara Paz) com o seu companheiro Fred (Túlio Starling).

Colin e Ferreira como Mari e Rafa. Foto: Desiree do Valle

Bem recebido pela plateia da Serra Gaúcha, A porta ao lado nos apresenta o primeiro casal levando uma vida regular e tranquila, mas também sem muitas empolgações para além do trabalho de Mari em seu restaurante e do êxito profissional de Rafa, já numa situação confortável em termos sociais, considerando ser ele um personagem negro (com tudo o que significa ser negro num país racista).

A chegada do segundo casal – que vive um relacionamento aberto, sem a amarra da fidelidade sexual – para morar no apartamento ao lado vai, aos poucos, alterando a maneira de, primeiro, Mari e Rafa encararem a ideia de conforto matrimonial que vivem e, segundo, levar Isis e Fred a discordarem de seus conceitos de liberdade absoluta a partir da possibilidade de terem um filho.

Ainda que Bayão e Corso tenham desenhado com boa consistência aquilo que forma os quatro personagens (com Rezende dando o norte para essa consistência, e os atores dando corpo a eles) há um protagonismo aqui, e ele é de Mari.

Partindo disso, mesmo com o tema infidelidade (ou não) matrimonial pululando na sinopse oficial do filme, um outro tema mais subjacente e, nos parece, mais valioso aqui, é aquele que reside na necessidade de nos esforçamos para tomarmos as rédeas da nossa própria vida, independente de levâ-la para uma opção mais tradicional ou não.

Não é algo aleatório de afirmar uma vez que o próprio roteiro se apresenta claramente, do início ao fim, como um arco de transição revelando a transformação dessa mulher cheia de certezas mas insegura sobre si mesma, ainda que não racionalize isso consigo.

O resultado é uma personagem que se pauta pela autoafirmação, e não apenas por julgar o estilo de vida dos vizinhos diferentes, mas também pelo seu histórico familiar, em tom competitivo com a sua mãe (Louise Cardoso) e na própria relação de sua dependência financeira com o seu marido Rafa.

Abrindo esse arco, A porta ao lado é muito feliz ao, já no início do filme, nos apresentar o primeiro encontro e transa de Rafa e Mari, com a protagonista revelando que “nunca quer estar em lugar nenhum” e que, numa tentativa frustrada de ir embora após o sexo, volta para o apartamento de Rafa e se deixa entrelaçar pelos braços dele para dali não mais sair.

Essa dica sutil e inicial sobre como é essa mulher que resolve, ou melhor, que deixa que resolvam por ela o seu destino é concluído com a última e econômica fala de Mari no filme.

Com o detalhe que ela o diz olhando para a lente, para o espectador, como se o recado não pudesse ser o mais claro possível a qualquer um no auditório do cinema a respeito da importância de ser honesto com você mesmo.

Paz, Starling, Ferreira e Colin em cena de “A Porta do Lado”. Foto: Desiree do Valle

A porta do lado, no final das contas, navega por esse que é um dos mais difíceis aprendizados do indivíduo humano, se conhecer e se permitir; deixando claro que esse processo de autoconhecimento é muito mais complexo do que o contexto da fidelidade ou infidelidade matrimonial (embora uma coisa não se desassocie da outra).

No caso, toda a problematização a respeito da traição sexual de Mari; e de Rafa com o seu encantamento pela colega no trabalho; de Isis ao omitir algo que não poderia ser omitido do companheiro, e de Fred ao quebrar o sagrado acordo de liberdade absoluta nas decisões de cada um são, no final, ferramentas que levam Mari para um lugar onde ela pode enxergar melhor a si própria.

Rodado na pandemia, o filme teve três semanas inicias de gravações e precisou ser interrompido por sete meses em função da segurança sanitária da equipe. O que torna A porta… algo ainda mais especial do ponto de vista da dramaturgia e da coesão dos atores na composição de seus personagens.

Todos estão num nível alto de conforto dentro da pele de seus personagem, algo facilmente reconhecível na tela, com destaque para o elenco feminino, com Colin pontuando as crescentes dúvidas na cabeça de sua Mari numa gradação dramatúrgica não só crível mas também envolvente, o que é valioso aqui para ajudar aquele espectador que possa vir a se reconhecer em sua personagem.

Ferreira (e) e Colin em coletiva de imprensa hoje (17). Foto: Luiz Joaquim

Em sua fala na coletiva de imprensa na manhã de hoje (17), Dan Ferreira comentou que o isolamento compulsório os estimulou ainda mais a entregar essa coesão em suas crias, enquanto Starling lembrava que esse trabalho, de certa forma, os salvou, com todos se esforçando para entregar leveza aos personagens numa mesma época em que a vida real batia a nossa porta, diariamente, nos lembrando das centenas de milhares de brasileiros mortos pela Covid-19.

CURTAS – O segundo destaque da noite foi o curta-metragem que antecedeu A porta ao lado. Ele veio da Paraíba pelas mãos do iniciante Antônio Galdino, natural de Serrinha dos Pintos (RN). O diretor comoveu a todos com a sua apresentação e seu choro ao lembrar das limitações vividas (morar de favor, trabalhar lavando pratos, etc) para pagar a sua equipe.

Antônio Galdino se emociona ao apresentar seu curta-metragem “O Pato” | Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

No seu O pato, Galdino investiga a violência doméstica a partir de Cida (Norma Góes), que cuida da sua filha com uma nova determinação: libertá-la do vilipêndio que ela própria vivia na pele, com literalmente, marcas no peito da covardia e brutalidade masculina.

A circunstância de apresentação no filme para esta resolução de Cida se dá pela preparação de uma galinha para uma refeição. Importante salientar que O pato se desenvolve sem diálogos, daí a importância e o cuidado (exitoso) de Norma Góes traduzindo a angústia de sua personagem apenas com o seu rosto, que ganha brilho pela lente do fotógrafo João Carlos Beltrão, imprimindo uma particular beleza de grandeza humana na tela.

Não será surpresa se Norma levar o Kikito de melhor atriz da categoria, sendo o próprio O pato, até o momento, um dos candidatos mais fortes ao título de melhor filme dessa coleção de curtas de 2022 por aqui.

Norma Góes em cena de “O Pato”

O outro curta foi a animação amapaense Solitude, de Tami Martins e Aron Miranda, revelando um traço de muita personalidade para falar, também, da necessidade de amor próprio como o princípio de todas as coisas a partir, no caso do filme, de uma garota que vira a página sobre um relacionamento abusivo enquanto a sombra de uma mulher (da mesma mulher?) caminha por um deserto enquanto se percebe desaparecer.

O longa-metragem que encerrou a noite veio da Argentina/Uruguai – Cuando oscurece – pelas mãos do diretor Néstor Mazzini. Filme que, contou Mazzini na noite de apresentação, integrar uma trilogia (este é o segundo dos três).

Apesar do nome estelar de Cesar Truncoso no pequeno elenco, quem mais brilha no filme é a atriz Matilde Creimer Chiabrando (a época das gravações com seis anos de idade).

Com uma naturalidade desconcertante, Matilde dá vida ao personagem Flor, menina que está sendo raptada pelo pai (sem que ela compreenda isso) numa longa viagem que Pedro (Truncoso) promove como retaliação contra a ex-esposa Erica (Andre Carballo) por ela ter restringido o acesso dele à menina.

Cuando oscurece é rígido em sua opções narrativas (e eficaz nisso), mas também permitir ao espectador percebê-lo como um ótimo curta-metragem que foi transformado apenas num bom longa-metragem de 77 minutos.

– viagem a convite para o festival

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