50º Gramado (2022) – Noites Alienígenas
Alienígenas somos nós.
Por Ivonete Pinto | 15.08.2022 (segunda-feira)
– na foto de Edson Vara/Agência Pressphoto, a equipe de Noites alienígenas chegando no Palácio dos Festivais
GRAMADO (RS) – Grosso modo, a força de Noites alienígenas está em conjugar a mitologia indígena, a natureza da criminalidade e os alienígenas. Neste último item, entra a maconha.
O traficante hippie vivido com a maestria de sempre por Chico Diaz, abre o filme expondo sua teoria cósmica impregnada de alienígenas, numa viagem típica de maconheiros de décadas atrás (os maconheiros de hoje provavelmente acham que devemos temer só os chineses).
Esta mesma cena, ao som de Raul Seixas (diegeticamente oportuno), tem um tour de force admirável, filmado em plano sequência, com Diaz contracenando com Gabriel Knoxx, o jovem não ator (ou ator social). Ou seja, na arrancada o filme de estreia na ficção de Sérgio de Carvalho impacta pela originalidade temática e de linguagem.
Quanto ao tema, trata-se de um grande privilégio estar em um festival atento à diversidade regional. O filme vem do Acre (sic), estado cuja população até lida com humor sobre sua condição de desconhecido no cenário nacional. A sua parca produção cinematográfica, só recentemente vem ganhando visibilidade.
Por sua vez, a cultura ligada à Amazonia e aos indígenas acaba tendo o status de algo estrangeiro, ou alienígena mesmo.
Em paralelo e de forma indissociável, esta produção que estreia em Gramado, nos apresenta um tema conhecido dos brasileiros, que é a violência urbana, principalmente cruel para com a população jovem. Mas mesmo ela está impregnada de elementos únicos, pois constituída de vertentes da criminalidade vinda do garimpo ilegal e de toda sorte de exploração para com os indígenas.
A cultura rapper, em princípio também estrangeira ali, se desenvolve cruzando com outras influências. Uma salada que o filme nos entrega através de uma estética herdeira do cinema novo e suas câmeras na mão, porém que adere a um cinema contemporâneo, cujo principal meta, aqui, é não subestimar o espectador.
Neste sentido, não podemos revelar algumas situações pontuais que funcionam como sugestões para que se possa compreender o que aconteceu. Mesmo o que é mostrado, como a relação com o indígena aculturado Paulo (Adanilo), perdido entre suas raízes e o universo dos brancos, igualmente requer chaves que só o espectador mais atento consegue utilizar.
A presença reiterada de uma cobra, por exemplo, nem sempre pode ser decifrada pela simbologia cristã. E tanto o roteiro, como a fotografia (e, claro, a montagem que fará as escolhas finais) são construídos com rigor, honestidade e coerência com o projeto.
Em suma, Noites alienígenas traz uma proposta vigorosa e rende dezenas de substantivos que não se esgotam nesta primeira impressão.
O fato é que filmes como este escancaram a nossa absurda ignorância quanto ao chamado Brasil profundo. Mais uma vez, é uma produção que possivelmente encontre imensas dificuldades de distribuição e que por conta disto não alcance a quantidade de espectadores que merece.Esta última frase poderia até ser copiada e colada a propósito de outros filmes exibidos em festivais, incluindo Gramado, que em tese fomenta interesses comerciais. De qualquer modo, fica a dica para que o leitor fique atento para quando tiver oportunidade de ver um filme do Acre, que diz tanto sobre o País.
Leia também a crítica de Luiz Joaquim para Noites alienígenas clicando aqui.
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