50º Gramado (2022) – “O Pastor e O Guerrilheiro”
Revisão horizontal de uma geração guerrilheira, pela fé ou pelo comunismo
Por Luiz Joaquim | 16.08.2022 (terça-feira)
– na foto de Edison Vara/Agência Pressphoto, José Eduardo Belmonte em entrevista coletiva para O pastor e o guerrilheiro
GRAMADO (RS) – Entre sessões competitivas e a homenagem ao cineasta Joel Zito Araújo, a noite de ontem (15) apresentou uma cena inédita nos 50 anos do Festival de Cinema de Gramado. E inédita fora do âmbito dos filmes. Aconteceu antes da subida de Joel Zito ao palco, criando uma pequena tensão na produção do evento quando um parte considerável do teto cedeu gerando uma grande goteira (chovia forte em Gramado) exatamente acima das apresentadoras Maria Martins e Renata Boldrini. Para além da inusitada situação, não houve prejuízo e a cerimônia prosseguiu no seu rumo após os ajustes do Festival.
Uma vez recebendo a homenagem, e espirituoso, Joel Zito aproveitou para brincar dizendo que foi Xangô, seu orixá protetor, que o saudou com chuva dentro do cinema. O diretor do recém-lançado O pai da Rita foi contemplado com o Troféu Eduardo Abelin.
No mesmo palco, abrindo a noite, antes de Joel Zito, José Eduardo Belmonte apresentou o seu O pastor e o guerrilheiro, que teve como ponto de partida o livro de Glênio Sá, Relato de um guerrilheiro.
Como descrito no próprio filme pela personagem Juliana (Júlia Dalávai, a Guta da Pantanal global), o livro de Glênio relata algo como o que Che Guevara escreveu em seu diário.
Mas, no caso de Relato de um guerrilheiro, o então universitário de Brasília, Glênio, conta sua peleja contra a ditadura militar no final dos 1960s e a sua consequente inserção na luta armada do Araguaia, quando passa por treinamento guerrilheiro na floresta amazônica e ali acaba se perdendo por vários dias quando sai numa missão.
Tal circunstância na floresta se dá no início dos anos 1970, mas O pastor e o guerrilheiro segue alternando dois tempos. A também estudante da Universidade de Brasília, Juliana, está em 1999 e acaba de saber que o seu recém falecido pai, um Coronel do exército (Ricardo Gelli) – que sempre lhe foi ausente por a filha ser fruto de uma relação fora do casamento – lhe deixou uma herança.
É a partir dessa aproximação que Juliana acessa o livro de Glênio e por ele descobre que seu pai atuou como torturador e que Glênio tornou-se amigo de um certo pastor evangélico chamado Zaqueu (César Mello, numa performance marcante pelo que entrega de humano ao seu pastor). A proximidade entre Glênio e Zaqueu se deu em 1973 num cárcere da ditadura, com este último sendo preso por um erro dos militares, que o confundiu com um “subversivo”.
O roteiro de Josefina Trotta estabelece o caminhar dessas histórias alternando os tempos do livro (1968-1974), com o tempo de Juliana, 1999. No caso dela, vivendo um final de milênio em que os jovens brasilienses são bem distintos daquela geração do Glênio estudante, 30 anos antes; estando a nova juventude passando por uma ressaca regada pela falta de perspectiva para o futuro, só que em plena democracia.
Juliana é aqui o símbolo dessa geração que pode ser replicada aos anos 2020. Nesse sentido, O pastor e o guerrilheiro é um produto do seu tempo (hoje) e não esconde sua pretensão da fazer acordar uma população tristemente adormecida diante da necessidade de movimentar-se para longe da tragédia na atual política da morte, presente no Governo Federal desde 2019.
Como bem sintetizou um colega da crítica de cinema ao final da sessão de ontem, temos aqui um filme “de esquerda com estética de direita”. Talvez um desdobramento dessa síntese possa ser compreendida pelo comentário certeiro de Juca Ferreira, ex-Ministro da Cultura, feito hoje (16) durante a coletiva de imprensa do filme.
Juca destacou que o filme de Belmonte não vai ao extremo de contar essa história por opções esteticamente mais radicais, o que poderia afastar espectadores, mas também não vai ao outro extremo, como alguns filmes fazem, de caricaturar os guerrilheiros. Nesse meio termo, a intenção é clara: fazer-se ouvir, ou ser visto, pelo maior número de espectadores no Brasil.
Algo que seria interessante quando lembramos daquele que é o único momento desafiador do filme (e necessário para os dias de hoje, tão restritos em uma dicotomia limitadora). Ele, o tal momento, se dá no cárcere, entre Glênio (Johnny Massaro) e Zaqueu, com cada um tentando expor as razões pelas quais cada um tem fé no que tem: o Comunismo e o Cristianismo.
Há ainda espaço no enredo, para pontuações sobre a função da igreja de inclinação pentecostal ou neopentencostal na vida de seus fieis. É um filme, enfim, que luta em vários flancos, e consegue um razoável êxito em sua maioria.
Uma curiosidade: o filme de Belmonte teve custos moderados para a dimensão épica do que mostra plasticamente na tela. Foi gasto menos que R$ 5 milhões. A título de comparação, o anteriormente exibido aqui em Gramado, O clube dos anjos, custou R$ 4,75 milhões e resolve-se quase que totalmente numa mesma locação interna/estúdio com seu elenco de uma dúzia de atores, entre protagonistas e coadjuvantes.
– Viagem a convite do Festival.
— Leia também a crítica de Ivonete Pinto para O Pastor e O Guerrilheiro
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