50º Gramado (’22) “O Pastor e O Guerrilheiro” #2
Pertinências e provocações de um filme para ser discutido.
Por Ivonete Pinto | 28.08.2022 (domingo)
O pastor e o guerrilheiro foi recebido em Gramado, sob a perspectiva da crítica, com pontos em seu desfavor. A começar que José Eduardo Belmonte foi contratado para dirigir a história que o produtor Nilson Rodrigues queria contar. Na indústria do cinema, até aí nenhum problema. A questão é que o cinema brasileiro é autoral por excelência, porque os diretores participam da concepção à finalização dos filmes. E foi assim com os primeiros filmes de Belmonte Subterrâneos (2003), A concepção (2005).
Vindo de Brasília, representava uma vitalidade que a todos chamava atenção. De uns tempos para cá, a cada novo título pensamos: lá vem mais um filme do Belmonte. Só em 2022, são três lançamentos, incluindo Alemão 2. [Nota do editor: o seu outro lançamento no cinema em 2022 foi As verdades]. Enveredar para séries, em produções Globo Filmes (Carcereiros), significou arregimentar orçamentos polpudos. Não é demérito, por suposto, mas ele se tornou um diretor que filma muito. Entretanto, recuperando uma entrevista feita com ele para a revista Teorema número 14, de 2009, vemos que ele sempre filmou muito rápido. A pergunta que abre a entrevista é precisamente esta: Em alguns anos, você dirigiu quatro longas. Como ocorreu isso, em termos de produção? Como você conseguiu reunir recursos para fazer tantos filmes em tão pouco tempo?
Já nesta época sua velocidade chamava a atenção e fica claro que esta é apenas sua característica como realizador, portanto não pode, ou não poderia, ser um ponto de partida para julgar seus filmes.
E talvez tenha sido esta – a capacidade como realizador e ser brasiliense – a credencial para ser convidado a dirigir O pastor e o guerrilheiro, cujo orçamento é modesto, cerca de 5 milhões de reais (menos de um milhão de dólares), para filmar na selva, na cidade, cenas de ação na UNB/Universidade Nacional de Brasília, três décadas distintas, com centenas de figurantes.
Mesmo que um certo olhar de desconfiança tenha prejudicado sua recepção (da crítica), O pastor e o guerrilheiro tem méritos inegáveis de realização e temática. Saiu do festival sem qualquer prêmio e em pelo menos uma categoria parece ter sido injustiçado. O ator que faz o pastor, César Mello, é estupendo. A construção de um personagem cheio de nuances, incluindo contradições, faz toda diferença no filme. Este personagem, aliás, mais do que o guerrilheiro, é o que rendeu múltiplas questões no debate ocorrido na manhã seguinte à exibição em Gramado.
Há muitas subtramas neste filme que mostra a adesão à luta armada por parte de jovens estudantes da UNB nas décadas de 60 e 70. O estudante que vira guerrilheiro (Johnny Massaro) convive na prisão com o pastor pentecostal interpretado por César Mello (preso por engano) e rende bons diálogos. Anos depois, final da década de 90, vemos o pastor já com família formada, tocando com correção os serviços de uma igreja pentecostal.
Baseado no livro Relato de um guerrilheiro, de Glênio Sá, o roteiro do filme criou um personagem que não está no livro, de uma jovem, também estudante na UNB, filha ilegítima do sádico militar comandante de sessões de tortura (todo torturador é um sádico). Os fatos em torno desta jovem, fictícios, talvez ocupem espaço demais no enredo e deixam lacunas difíceis de preencher com a imaginação. Por exemplo, por que o coronel, já velho, se suicida? Militares não costumam se arrepender do passado. Sádicos não têm peso na consciência (uma rápida pesquisa na internet sobre militares ligados a ditaduras que se suicidam revela um caso no Uruguai, outro no Chile. O coronel brasileiro do filme seria uma exceção a ser justificada dramaturgicamente).
A própria representação do pastor, que não aceitava comercializar seus cultos, é um tanto idealizada. O produtor Nilson Rodrigues defendeu o caráter do pastor por se tratar de um momento histórico, da década de 1990, onde o movimento pentecostal tinha outro perfil, sendo que os neopentecostais é quem anos depois terão o comportamento ignóbil que têm hoje.
O ex-deputado José Genuíno e o ex-ministro da Cultura dos governos Lula e Dilma, Juca Ferreira, foram consultores do roteiro e estavam no festival como convidados do filme. Genuíno falou no debate sobre a relação de presos com padres da pastoral, deixando antever o papel contraditório que a Igreja teve nos anos da ditadura civil-militar. Já o depoimento de Ferreira, também durante o debate, foi mais contundente. Em oposição ao que afirmou o produtor do filme, sobre a igreja pentecostal ser diferente do que é hoje, lembrou de uma frase de Brizola a respeito. Leonel Brizola teria, ainda na década de 1980, denunciado o conluio do governo norte-americano com os pentecostais, que planejaram a introdução de um elemento religioso que se infiltrasse na sociedade brasileira com o objetivo de chegar ao poder. Pois bem, parece que chegaram…
Juca Ferreira, com honestidade, ousou apontar um problema do filme no próprio debate sobre ele. Para além de uma saia-justa, seu depoimento rende muitas reflexões, principalmente sobre a responsabilidade de se tratar de um tema que atualmente tem tantos e graves desdobramentos na política nacional.
O roteiro de O pastor e o guerrilheiro até ensaia uma visão crítica, ao colocar o jovem filho do pastor como figura da nova geração de pastores midiáticos, proto-Edir Macedos que nem precisam se candidatar a nada, pois compram seus próprios deputados, presidentes…
Ou seja, quando o filme estrear, não deixe de ver e tirar suas conclusões sobre erros, acertos e lacunas do filme ao abordar questões tão quentes. A discussão sobre ser um filme do diretor Belmonte ou não, fica em segunda plano.
Leia também texto de Luiz Joaquim sobre O Pastor e O Guerrilheiro.
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