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Festivais

50º Gramado`22: “Marte Um” e “A Viagem de Pedro”

A gente dá um jeito.

Por Luiz Joaquim | 18.08.2022 (quinta-feira)

– Equipe de Marte Um chega ao Palácio dos Festivais, foto de Agência Pressphoto/Edison Vara

GRAMADO (RS) – “A gente dá um jeito”. Mais do que ser uma afirmativa definidora dentro do enredo de Marte um, filme de Gabriel Martins exibido ontem (17) aqui na competitiva do 50º Festival de Cinema de Gramado, a frase também resolve o complexo sentido do que é o povo brasileiro.

E isso não seria alcançado com a autenticidade que vemos impressa no filme por Gabriel, André Novais Oliveira, Maurílio Martins e o produtor Thiago Macedo Corrêia se eles próprios não fossem o “povo brasileiro”. Lembrando que este quarteto que dá corpo a produtora mineira Filmes de Plástico, colocou, definitivamente, a região de Contagem, da Grande BH, na cartografia do cinema nacional.

É claro que não vamos entrar num debate sobre qual seria a identidade do “povo brasileiro” – não cabe neste espaço e nem temos ferramentas teóricas pra desdobrá-lo -, entretanto, podemos nos contentar com o entendimento, como ponto de partida, de que é na população preta e periférica que reside a maior massa de nossa população.

E é certo que Marte um irá desdobrar-se em debates dos mais variados na boca de seus felizardos espectadores a partir da próxima quinta-feira (25), quando será lançado nos cinemas. Com grande probabilidade de que o mais saliente dos debates gire em torno da beleza que há na coesão (ainda que permeada por atritos) dessa suburbana família a nos apresentada.

Formada por um quarteto cujos elementos possuem individualmente sua própria autonomia, sonhos e personalidade (mérito próprio de bons enredos), a família conta com o adolescente Deivinho (Cícero Lucas), peladeiro craque no futebol, mas muito mais interessado nos mistérios da astrofísica e em integrar uma missão para Marte com data marcada para 2030; conhecemos também a sua irmã universitária Eunice (Camila Damião), decidindo com a namorada (Ana Hilário) dividir um apartamento e sair da casa dos pais, no caso, o funcionário de um condomínio residencial, Wellington (Carlos Francisco, de Bacurau) que está longe do alcoolismo há orgulhosos quatro anos, e a sua esposa Tércia (Rejane Faria), que presta serviços domésticos.

Rejane Faria e Cláudio Francisco em cena de “Marte Um”

Entre os atritos criados por Wellington empurrar o filho Deivinho para tornar-se jogador profissional (a propósito do tema, ler sobre o filme uruguaio 9, exibido em Gramado – clique aqui) e o temor de Eunice em compartilhar com a família sua orientação sexual, temos um mal-estar que persegue a mãe Tércia após a mesma sofrer uma pegadinha de televisão.

Tércia tem certeza que algum tipo de maldição a persegue desde o incidente, e que a praga afetará a toda sua família.

Importante dizer que, com uma pequena inserção de imagem numa tevê, Gabriel Martins, ou só Gabito para os próximos, nos informa que o tempo vivido pelos personagens é o final de 2018 início dos 2019 (época em que o filme foi gravado).

A tal imagem da tevê mostra Jair Bolsonaro assumindo a presidência do país e esse elemento, mesmo sendo externo à família, chega a ela pela tevê (o mesmo instrumento que pregou a pegadinha em Tércia) e, de fato, sabemos, tal momento histórico tornou-se uma espécie de maldição que se impôs a todas as famílias brasileiras, particularmente como a do filme, seja pelo desemprego, pelo aspecto racial ou envolvendo a comunidade LGBTQIA+.

Marte um ainda abre janelas para muitos aspectos técnicos e nas opções estéticas que toma para a narrativa que escolhe, sem esconder o apelo sadio que um bom melodrama pode promover no espírito de seu espectador. Fazer esse espectador chorar ou sorrir com (e não ‘dos’) personagens e com as situações é do interesse de Gabito. Esse recém-pai (sua filha nasceu na pandemia) e gigante realizador que, vejam só, consegue nos comover profundamente com a mais simples (não simplória) imagem de um homem limpando uma cadeira no quintal de sua casa.

Cícero Lucas em cena de “Marte Um”

E pela reação da habitual fria plateia de Gramado, o cineasta não poderia ter sido mais exitoso. Na sessão de ontem, ao surgirem os créditos iniciais, surgiram também aplausos efusivos. Após a passagem de todos os créditos e ao ascender das luzes no Palácio dos Festivais, novos aplausos iniciaram, com todos de pé, virados para a equipe, numa reverência e agradecimento que pareceu infinita. [Veja vídeo aqui]

O que aconteceu foi uma espécie de catarse, expurgo de coisas ruins que a plateia se livrou naquele momento a partir do discurso de esperança, apesar de tudo que vivemos no Brasil. Esperança que Marte um nos entregou refletido na tela do cinema.

Do ponto de vista técnico, só para falar de um entre os vários que as produções da Filmes de Plástico contribuem na opção de trabalhar com a quase totalidade de um elenco preto, está no resultado de sua fotografia. Como fotografar o preto? Certamente não será pelas mesmas matizes ajustadas na câmera para fotografar o branco.

Leonardo Feliciano, diretor de fotografia do filme, deve ter boas pontuações a esse respeito, e, ainda que não as tenha, seu trabalho em Marte um é eloquente por si só, a julgar pela forma como salienta a apresentação da beleza da atriz Camila Damião.

Camila Damião e Ana Hilário em cena de “Marte Um”

Enfim, Marte um vem aí, e com ele o desdobramento de debates dos mais variados, e necessários, na boca de seus felizardos espectadores. A partir de 25 de agosto nos cinemas.

PEDRO – Na coletiva de imprensa ocorrida na manhã de hoje (18) aqui com a equipe técnica de A viagem de Pedro –, trabalho assinado por Laís Bodanzky exibido ontem no Festival e que chega nas salas de cinema no início de setembro – a estrela Cauã Reymond esclareceu uma dúvida que foi lançada para a diretora: Qual o interesse inicial em se debruçar sobre a figura de D. Pedro I para fazer um filme?

Bodanzky passou a bola para Cauã, também produtor aqui, porque veio dele a provocação que ela acolheu há quase nove anos.

Ele respondeu: “Eu não estaria sendo honesto se não contasse para vocês que a ideia surgiu de um desejo pessoal de ser mais dono da minha carreira. Tenho consciência de que meu physique du rôle acaba me oportunizando muitos papeis, mas eu queria desconstruir isso. Eu sabia que interpretar D. Pedro I, que inclusive eu já tinha interpretado no colégio, na 3ª série, funcionaria para esse fim. Mas sabia também que precisava de um olhar feminino para essa desconstrução”

Cauã Reymond (com microfone) na coletiva de “A Viagem de Pedro” | Foto: Cleiton Thiele/Agência Pressphoto

E continuou: “Numa pré-estreia, anos atrás, consegui arrancar o número do telefone da Laís e hoje estamos aqui discutindo não apenas sobre D. Pedro I mas sobre todo o entorno dele”.

Essa fala do galã na coletiva veio depois de muitas pontuações a respeito da releitura sobre o que seria heroico neste personagem da História do Brasil, agora com um novo desenho feito pela diretora em seu filme (roteirizado também por ela).

“Escrever sobre D. Pedro I não foi o mais difícil. Era um homem muito bonito e também tóxico. Viciado em sexo e com uma fixação pela grandeza que explicava muito sobre ele ser um bom estrategista militar, mas não político. O que levou, a certa altura, a não ser desejado nem no Brasil nem em Portugal”. Para Bondazky, “O mais difícil estava em construir aqueles que estavam no seu entorno”.

Cauã com D. Pedro I

O enredo transcorre em 1831, quando D. Pedro I viaja a Portugal em busca de sua autoridade no reinado, roubada pelo irmão. A história transcorre, portanto, no mar, entre a saída do Brasil e a chegada em Portugal num navio inglês com figuras da corte, oficiais e escravizados de diversas posições sociais e origens da África.

O contexto expõe um complexo enredo, com diálogos em francês, alemão, inglês português lusitano e brasileiro, além de idiomas de matriz africana. Sendo parte do elenco oriundo da Irlanda, do Congo, Moçambique e Nova Guinê entre outros.

“Escrever particularmente sobre os pretos daquele momento é que foi desafiante, porque a história oficial não nos apresenta a eles em sua dignidade. Um livro chamado Achados e perdidos da História: Escravos: A vida e o cotidiano de 28 brasileiros esquecidos pela história [de Leandro Narloch] me ajudou por trazer um rico depoimento dos negros a partir do que o escrivão registrava quando eles eram presos”, revelou a cineasta.

Ao custo de R$ 8 milhões, além das sequências feitas no navio Cisne branco, da Marinha Brasileira, as sequências internas do filme foram realizadas em sete cenários montados em estúdios de São Paulo, com uma estrutura hidráulica que fazia o cenário balançar.

Bodanzky, como opção estética, enquadra suas imagens no formato 1,33:1, o que proporciona um estranhamento inicial, considerando as poucas experimentações do nosso cinema contemporâneo nessa proporção (lembramos de O homem das multidões). Mas o resultado é interessante para além dessa formatação, e o todo de A viagem de Pedro parece apontar para um tipo de produção que pode ser muito bem vinda, principalmente no Brasil atual, em que precisamos revisar a nós mesmos para sabermos aonde iremos.

– Viagem a convite do Festival

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