Cantando na Chuva (70 anos)
Os 70 anos do melhor antídoto contra o baixo astral
Por Renato Felix | 01.08.2022 (segunda-feira)
Cantando na chuva (Singin’ in the Rain, EUA, 1952) é o filme que costuma negar todas as crenças que são repetidas quando se fala do grande cinema. Figurando sempre em qualquer lista de melhores filmes do mundo, ele já é um contraponto direto à ideia de que o filme, para ser bom mesmo, tem que ter um “autor”. Isso já começa na direção: são dois os diretores, e não se trata de uma parceria perene. Trata-se de uma produção de estúdio, super “da indústria”, e, ainda por cima, é um projeto de encomenda. E, com tudo isso, tem um status alto entre os críticos mais severos e cai nas graças até de quem nem gosta de musicais.
Dizer que o filme – que celebra 70 anos este ano – é uma perfeita combinação de comédia da melhor qualidade com números musicais incríveis, executados por ases do gênero parece pouco. Outros musicais do mesmo período são ótimos no humor e contavam com um elenco tão bom quanto e uma trilha de canções até melhor, assim como diretores tão capazes e talentosos quanto Gene Kelly e Stanley Donen. Em Cantando na chuva, a química desses componentes foi, de alguma forma, dosada na medida exata. Médicos deviam receitá-lo contra o baixo astral.
Ninguém poderia antever isso a partir da gênese do filme: uma vaidade pessoal. Era comum, nos anos 1940 e 1950, musicais de cinema que eram produzidos em torno do catálogo de canções de um compositor ou dupla de compositores. Esses filmes poderiam organizar esse repertório para tecer uma biografia do autor das músicas (como, por exemplo, Minha vida é uma canção, 1948, sobre a parceria de Richard Rodgers e Lorenz Hart) ou em torno de uma história nova (como Sinfonia de Paris, 1951, com a obra dos irmãos George e Ira Gershwin). Eis que Arthur Freed, então poderoso produtor dos melhores musicais da Metro, achou que já estava na hora de um filme com as canções dele mesmo (com o parceiro Nacio Herb Brown).
Para isso, convocou o time – os roteiristas Adolph Green e Betty Comden e, para a direção, Gene Kelly e Stanley Donen, repetindo a parceria entre os quatro, que havia dado certo em Um dia em Nova York, 1949 – e passou a missão.
Como as canções de Freed e Brown haviam sido escritas predominantemente nos anos 1920, a equipe decidiu situar ali a história. E, naquele começo dos anos 1950, muitos velhos profissionais daqueles dias ainda estavam por ali, contando histórias do pandemônio que foi a virada do cinema mudo para o cinema falado, no fim daquela década.
Pronto. Estava ali o cenário que combinava com a época das canções: a Hollywood do fim dos anos 1920.
Uma dos fatos daquela época é o de que atores que eram estrelas viraram zés-ninguéns da noite para o dia, porque tinham vozes péssimas. Cantando na Chuva, então, parte de um par romântico superfamoso do cinema silencioso: Don Lockwood (Gene Kelly) e Lina Lamont (Jean Hagen). Quando O Cantor de Jazz inaugura a era do som no cinema, em 1927, todo mundo tem que, de uma hora para outra, se adequar à novidade. Acontece que Lina Lamont tem uma voz terrivelmente estridente e fala tudo errado.
O filme “guarda” essa personagem de maneira muito inteligente. Começa com a entrevista na pré-estreia do mais recente sucesso da dupla de atores, com um flashback de Don e o amigo músico e comediante Cosmo Brown (Donald O’Connor) sobre o início da carreira de ambos, um número musical inteiro de Don e Cosmo, o discurso de Don para a plateia do cinema após a exibição do filme. E só depois de tudo isso é que Lina rasga nossos ouvidos pela primeira vez.
Pela narrativa esperta, não é difícil que um espectador não perceba até então que ela não tinha ainda aberto a boca.
Mas quando ela abre saem alguns dos momentos mais engraçados do filme, num show particular de Jean Hagen filme adentro. Quando ela é atacada por fazer algo que pessoas corretas não deveriam fazer, ela devolve: “‘Pessoa’? Eu não sou uma ‘pessoa’. Eu sou…”, diz, lendo um jornal, “…‘uma estrela brilhante no firmamento do cinema’”. Jean moldou sua performance na personagem principal da peça Nascida ontem, que ela interpretou no teatro. Sua atuação em Cantando na chuva foi uma das únicas duas indicações do filme ao Oscar.
Jean ficou marcada por essa voz esganiçada, mas sua voz verdadeira pode também ser ouvida em Cantando na chuva. Quando a personagem de Debbie Reynolds, Kathy Selden, dubla Lina, é a voz de Jean Hagen – e não de Debbie Reynolds – que ouvimos. Ou seja: Jean Hagen dubla Debbie Reynolds dublando Jean Hagen. É uma das ironias narrativas do filme.
É através de Lina Lamont, também, que surgem as maiores agruras de uma arte aprendendo a falar com a chegada do som. Quando o estúdio resolve transformar o novo capa-e-espada mudo que Don e Lina estão rodando em um filme falado, surgem cenas especialmente engraçadas e que cabem fácil em qualquer curso de história do cinema. Os diálogos eram solenes e empolados (tentando soar como os clássicos do teatro), era preciso aprender a dosar o som ambiente, o microfone enorme era difícil de ser escondido, tudo girava em torno do som e a fluidez da imagem ficava em segundo plano.
Nesse ponto, um número musical como “Moses supposes” é um comentário interessante. A princípio, parece apenas um momento dedicado a mostrar a perícia de Gene Kelly e Donald O’Connor no sapateado – e, sem dúvida, é uma das grandes performances da história do cinema nesse estilo de dança, além de ser muito engraçado. Porém, no contexto em que ele é uma subversão de uma aula de dicção de um professor muito formal, o número não deixa de ser uma observação sobre como o próprio cinema americano se encontrou ao subverter a solenidade dos diálogos “teatrais” em favor de falas rápidas, espertas e coloquiais.
E quem levou Hollywood a isso não foi o drama “importante” ou grandes autores importados da Broadway. Foram a comédia, o filme de gangsters, jornalistas trocando as redações pela função de roteiristas. E também o musical, com suas histórias de intrigas nos bastidores da Broadway entre dançarinas e compositores pés-rapados e diretores estressados. “Moses supposes” é o musical coloquial tirando de tempo a seriedade empolada, espalhando tudo e colocando um balde na cabeça dela.
E esse é apenas um dos números maravilhosos do filme. Se como comédia Cantando na chuva é ótimo, como musical ele é espetacular. Há cinco ou seis números absolutamente antológicos e lindamente filmados, com o protagonismo todo para os dançarinos, e com a câmera “dançando” com eles.
Parênteses. Nos anos 1930, Fred Astaire ajudou a redefinir a maneira como os números musicais eram filmados. Quando se tornou um astro famoso, ele teve poder para estabelecer que os números deviam mostrar o máximo possível os dançarinos de corpo inteiro, sem cortes para closes ou para a reação de quem assiste. E com o mínimo possível de planos. “Ou dança a câmera, ou danço eu”, teria dito ele. Fecha parênteses.
Cantando na chuva segue essa filosofia, mas a câmera de Kelly e Donen (e do diretor de fotografia Harold Rosson) dança. Ela se movimenta sempre para acompanhar os protagonistas, para Debbie Reynolds estar sempre em destaque sobre as outras dançarinas em “All I do is dream of you”, avançando e recuando pelos cômodos de “Good morning”, tentando não perder de vista Donald O’Connor em “Make’em laugh”.
“Make’em laugh” é um exemplo do espírito de equipe do filme. Gene Kelly sentiu que era preciso que o filme tivesse um solo de Donald O’Connor. Interpretando um comediante no filme, O’Connor foi lembrando de todo tipo de palhaçada e acrobacias que fazia em seus tempos de vaudeville e Kelly, que assina a coreografia do filme, foi acrescentando ao número. O’Connor leva tábuas na cabeça, faz caretas, bate a cara na parede, briga com um boneco de pano (e apanha) e termina subindo correndo a parede e dando na sequência um salto de 360º para trás (duas vezes – na terceira, ele atravessa uma parede falsa).
Uma obra-prima que levou o fumante O’Connor (quatro maços por dia) ao hospital pelo esforço.
Imagine então para Debbie Reynolds que, anos depois, declarou: “Sobreviver ao nascimento e Cantando na chuva foram duas das coisas mais difíceis que já fiz”. Debbie, então com 19 anos, é o par romântico de Gene Kelly no filme: Kathy Selden é uma atriz iniciante que é perseguida por Lina Lamont, depois de aplicar-lhe uma torta na cara endereçada a Don Lockwood. Debbie não era dançarina de formação, mas sua performance na romântica “You were meant for me” é ótima. E extraordinária na animada “Good morning”, acompanhando no sapateado os experientes Kelly e O’Connor, na qual Debbie terminou com os pés sangrando.
Kelly era um diretor perfeccionista – e, vamos falar a verdade, tirânico – , com cobranças gritadas que levaram Debbie Reynolds às lágrimas algumas vezes. Fred Astaire um dia a encontrou chorando sobre um piano e disse que o trabalho duro ia valer o esforço (dizem que até a ajudou a ensaiar – Carol Haney, assistente de direção de dança, também fazia isso). Kelly anos depois refletiu que não foi legal com a atriz nas filmagens: “Fico admirado que ela ainda fale comigo”.
Debbie, por sua vez, considerou que o rigor de Kelly a ajudou a ser capaz de acompanhá-lo e a O’Connor. “Felizmente, ela era forte como um touro. E também uma grande copiadora, e podia pegar a rotina mais complicada sem muita dificuldade… na universidade do trabalho duro e da dor”.
Esse bastidor é importante para dar a completa noção da conquista artística de Debbie Reynolds em Cantando na chuva. Como os melhores do ramo, ela ainda fez tudo parecer fácil e natural na tela.
Ainda assim, um dos números estava acima da capacidade dela: “The Broadway Melody Ballet”. Usando elementos de balé clássico, trata-se de um curta-metragem dentro do filme, todo dançado e estilizado, contando uma história com começo, meio e fim. Para contracenar com Kelly, os diretores convocaram uma bailarina que vinha aparecendo em papéis pequenos na Metro: a monumental Cyd Charisse, que saiu daí para o primeiro time do estúdio com suas pernas intermináveis. É irônico que, em uma história sobre a voz, ela tenha tido esse destaque sem dizer uma palavra sequer no filme.
Em compensação, o corpo fala. Ela serpenteia pelo corpo de Gene Kelly, desembaça os óculos dele na coxa dela, numa das performances de dança mais sexy que já se viu no cinema. E, em outro momento, mantém os passos e a graça mesmo sob o vento de uma turbina que mantinha um longuíssimo véu sempre no ar.
E há, claro, “Singin’ in the rain”, a canção-título, possivelmente o número musical mais célebre do cinema. O solo de um Gene Kelly gripado debaixo de um temporal artificial (de água misturada com leite, para ficar mais visível) que é uma das grandes imagens cinematográficas de todos os tempos. O canto e dança com que sua felicidade desafia a chuva (“De onde estou, o sol brilha em todo lugar”, diz antes de começar) é exemplar.
Do “Durirudu duridurirudu” do começo ao final, são quatro minutos e nove planos nos quais Don Lockwood flutua para se abraçar a um poste, faz malabarismos com o guarda-chuva, brinca com uma calha, com as vitrines, com poças d’água e com o meio-fio. A todas estas, a câmera não o deixa escapar: segue para um lado e para outro, sobre e desce, se aproxima para closes nos momentos-chave, e a montagem providencia cortes no movimento de maneira a toda a sequência ser perfeitamente fluida até o final-surpresa, no auge da alegria, com o guarda que aparece de repente censurando em silêncio a molecagem do protagonista.
É um desfecho que resume bem Cantando na chuva: como comédia, é engraçadíssimo, e como musical, é brilhante. É, de verdade, uma estrela brilhante no firmamento do cinema.
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Nota do editor: Leia também texto do Prof. João Luiz Vieira escrito por ocasião da exibição do filme no 8º Olhar de Cinema (Curitiba) em 2019. Clique abaixo
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