17ª Mundo Árabe (2022) – ‘O Estrangeiro’
Um estrangeiro dentro de casa
Por Ivonete Pinto | 04.09.2022 (domingo)
A 17ª Mostra Mundo Árabe de Cinema, promovido pelo ICArabe (Instituto de Cultura Árabe) tem como tema a diversidade. É curioso, mas é preciso reafirmar que os países árabes não possuem um perfil uno, são tantas diferenças entre si, que não basta ser muçulmano para ser árabe, que só mesmo um programa com filmes de diversos países pode oferecer uma visão mais panorâmica. A história e a cultura de 22 países de etnia árabe é que, no limite, determinam os traços de identidade de cada população.
Talvez um dos países árabes mais complexos atualmente, ou convulsionados seja mesmo a Síria, de onde vem O estrangeiro (Al Garib/The stranger, 2021), de Ameer Fakher Eldin (coprodução com Catar, Palestina e Alemanha). O enredo acontece nas Colinas Golã, área de terra síria ocupada por Israel desde a Guerra dos Seis Dias, de 1967. O personagem central, Adnan (Ashraf Barhoum), morou em Moscou e, de volta às Colinas onde nasceu, ouve da janela de sua casa as bombas e os tiros “do outro lado” na Síria, envolta em uma guerra civil desde 2011.
Chama a atenção, logo nos primeiros minutos do filme, a proposta formal. O rigor com que os planos (e os enquadramentos) são desenhados, com janelas e portas sendo enquadradas, como se fossem molduras. O que nos remete à cineasta belga Chantal Akerman, em especial Làs Bas, que se passa “ali ao lado”, em Israel. Naturalmente, a referência pode soar pouco bem-vinda no contexto das Colinas de Golã, mas Akerman, cuja mãe judia polonesa sobreviveu a um campo de concentração, tem uma visão crítica sobre o que significa Israel hoje. A noção de moldura, do que limita, sintoniza com o contexto que estamos tratando.
O filme de estreia em longa-metragem de Ameer Fakher Eldin, premiado no Festival de Veneza de 2021 com o Edipo Re, flerta com Akerman e uma gama de cineastas contemporâneos ao optar por uma montagem que privilegia os tempos estendidos e o os diálogos rarefeitos. Na abertura, vemos um longo plano com um homem de costas, a contraluz. Estamos diante de um cinema contemplativo. Na sequência, observamos que muita coisa está acontecendo fora de campo; ouvimos sons de bombas ao longe. Assim, na apresentação dos personagens, temos a linguagem de um viés autoral, que convoca o espectador a pensar. Que permite que o espectador reflita sobre um cenário que não está dado ainda, mas que sinaliza claramente quanto aos tormentos de Adnan.
Personagem, aliás, sobre o qual não temos simpatia. Taciturno, amargo, rude com todos, estudou medicina em Moscou, mas não se formou, está em litígio com o pai e todos os amigos porque bebe. Não consegue parar de beber. Portanto, o filme assume o risco de não obter a adesão do espectador para com seu protagonista. Parece que para entendermos “o outro”, o que nos é estranho, estrangeiro, é preciso que passemos primeiro por uma etapa de recusa, de não admiração, para só então, depois de acompanharmos suas angústias, podermos nos aproximar mais. Porém, o filme não cede. Adnan não se torna simpático, apenas encontra humanidade no contato com o soldado ferido.
Com o surgimento deste soldado em cena, vindo da guerra, mas não se sabe de qual lado (até mesmo a ligação com o Estado Islâmico é aventada por Adnan e os vizinhos que o encontram), o filme faz uma curva. Como um estranho a que o título nos remete, Adnan é o único a cuidar do ferido, mesmo sem saber de sua história. A partir da interação com ele, de saber que ele igualmente pertence às Colinas de Golã, Adnan ensaia um princípio de redenção. O que acontece com este soldado e Adnan, não convém revelar. O filme pode ser visto ainda nesta terça-feira (6 de setembro), no CineSesc em São Paulo.
Em debate sobre O estrangeiro promovido pelo ICArabe (disponível no canal de Youtube do instituto [ ver aqui ]), o diretor foi confrontado com sua própria condição de estrangeiro. Sírio nascido em Kiev, na Ucrânia, passou a infância nas Colinas de Golã e hoje mora na Alemanha. Um estranho ele mesmo, com sensibilidade para construir um personagem com tantas camadas e tão próximo de suas vivências. Inclusive a leitura de uma possível doença que poderia Adnan sofrer, a depressão, é motivo para muitas interpretações procedentes. Mas uma depressão relacionada aos conflitos da ocupação israelense e da guerra síria e menos de um existencialismo sartreano onde o vazio, grosso modo, é o mote (o existencialismo de Camus, referência imediata quando falamos de “o estrangeiro”, requer outras considerações).
Também no debate falou-se na representação da mulher em O estrangeiro. Não há dúvidas de que se trata de um filme de homens. As três mulheres do filme, a esposa, a mãe e a filha de Adnan, são presenças silenciosas, que vivem à sombra. O filme não as trata exatamente como invisíveis, há planos sensíveis, com direito a closes, que demonstram seus sofrimentos. E há um plano em especial, longo, que revela um pensamento sobre elas. Em câmera fixa, vemos a mãe de Adnan, vestida em trajes tradicionais árabes com seu cabelo coberto, dobrando um lençol com a ajuda da nora. A nora, de longos cabelos à mostra e roupas ocidentais, nos primeiros instantes está fora de quadro, só aparece quando o lençol está quase todo meticulosamente dobrado. É um belo momento do filme, que sintetiza a condição das mulheres naquela sociedade. Também ilustra o domínio do jovem cineasta com a gramática do cinema, onde um plano sem diálogos e uma única ação condensam toda complexidade de uma situação cultural e histórica.
Ainda em relação aos detalhes que o diretor articula em favor da narrativa, destaca-se a presença de um pomar, a que o velho pai de Adnan não lhe quer dar posse. Por sinal, o pai deserda o único filho, em uma cena igualmente expressiva. Um pomar de maçãs, simboliza outro tanto de camadas que o espectador, pelo ritmo cadenciado dos planos, tem tempo para fazer suas conjecturas. Também destaca-se a vaca da família, que se recusa a continuar dando leite. Doente, funciona como metáfora para o que se passa com Adnan. Próximo dali, sempre a fumaça, o nevoeiro, o som dos tiros, que intermitentemente sufocam a todos.
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