Desterro
Os sentimentos que ardem por dentro
Por Yuri Lins | 21.09.2022 (quarta-feira)
A todo momento Desterro (Bra., Arg., Pt., 2022) direciona a atenção do espectador para opacidade de sua forma, sejam pelas atuações em tom artificial ou por uma montagem que não busca a invisibilidade de sua técnica. Cada parte é exposta em seu próprio poder de estranhamento, tornando necessário que o público saia de uma posição passiva e se engaje com a própria materialidade do filme.
Desterro é uma obra onde os sentimentos das personagens são gestados sob uma camada enrijecida de conformismo: seus gestos e posturas estão em desacordo com as ebulições internas que eles vivenciam. O que se assiste ao longo da metragem é o gerenciamento deste mal-estar até que não seja mais possível contê-lo. A protagonista Laura decide abandonar as estruturas fixas e viciadas de sua vida, e põe-se a percorrer uma estrada para o longe.
Pode-se dividir o filme em duas partes a partir de suas operações formais. Na primeira, acompanha-se o cotidiano de Laura e seu companheiro Israel (Otto Jr). O convívio entre eles é pautado por uma incomunicabilidade encoberta abaixo de uma troca aparentemente coerente. Em outras palavras: por mais que eles conversem e interajam de forma inteligível para ambos, fica-se com a sensação de que eles nunca estão falando a mesma língua, ou compartilhando o mesmo espaço físico, temporal ou mesmo emocional.
Tal contradição é alcançada através de uma desdramatização das atuações. Laura e Israel falam em tom monocórdico, quase que destituídos de psicologia. Suas expressões faciais parecem sempre rígidas, com poucas nuances. Ao passo que conversam, a montagem intercala o diálogo com planos de objetos inanimados que povoam o espaço em que eles estão. Por vezes, a câmera assume o ponto de vista de algum eletrodoméstico, como uma forma de evidenciar estas estruturas permanentes e amorfas que o cotidiano social impõe.
Casamento, família. Tudo padece de uma morosidade possibilitada pelo comodismo. Mas há coisas que queimam abaixo da pele de Laura. Ela some. Em seguida, Israel recebe a notícia de que ela morreu em uma viagem. A partir daí, o filme entra como que em uma narrativa kafkiana: Israel percorrerá os espaços da burocracia própria à morte. A apatia que há no interior da dinâmica do casal se expande para o nível institucional: tudo é enrijecido e capitalizado, sempre promovendo esse desespero maquinário. Diante das barreiras impostas, Israel só pode senão sair da apatia de seu corpo e correr angustiadamente pela rua, sem qualquer rumo.
Na segunda parte do filme tem-se a perspectiva de Laura a partir do momento em que ela está na viagem. Tudo o que acontece a partir deste ponto está, invariavelmente, imantado com a informação de que ela morrerá. Um sentimento de preciosidade, de iminência diante do fim, é agregado a cada plano que surge na tela. Grande parte da ação se concentra dentro do ônibus que ruma para o longe. Aqui o tipo de registro muda para algo menos enrijecido: a câmera está mais interessada na fotogenia que emana do rosto de Laura, quase como se fosse um estudo pictórico acerca dele, com belos close-ups que cintilam com as variações da luz que adentra no veículo.
Há, também, a incursão de monólogos de outras personagens que estão no mesmo ônibus. São mulheres que falam abertamente sobre suas histórias de dor e desejo. Aqui, o texto é vocalizado de forma distinta do modo atonal da primeira parte da narrativa. Novamente filmado em close-ups, com o olhar de cada uma mirando frontalmente a objetiva, cria-se um sentimento de que talvez estes planos sejam lampejos de documentário no interior da ficção. Contudo, se todos os monólogos são atuados por atrizes profissionais, é na encarnação do verbo, e nos efeitos da palavra sobre as camadas tectônicas do rosto humano, que essas cenas ganham um poder de presença para além do esquema da forma. São sentimentos que transbordam.
Todo o processo de afastar a encenação de uma lógica naturalista acaba por tonar preciosos estes momentos de transbordamento sentimental; eles são como ilhas em meio a uma estrutura formal quase mineral. Pode-se dizer que este essa é verdadeira intenção do filme, uma vez que, não à toa, todos estes momentos acontecem através das personagens femininas que, de alguma forma, rompem com os alicerces impostos às suas vidas.
Desterro é um filme que inquieta e conturba. A primeira ficção dirigida por Maria Clara Escobar traz consigo uma vontade de cinema bastante louvável, indo na contramão de grande parte do cinema brasileiro recente. Como todo primeiro filme, é perceptível que há nele uma busca por uma voz própria em meio a tudo aquilo que foi formativo para o olhar de sua realizadora. Maria Clara Escobar parece ir beber das melhores fontes do cinema moderno para compor a forma de seu filme. Sente-se ecos de Robert Bresson, J.L Godard, P. Garrel, Anne Marie Mellville, Claire Denis. Leos Carax, entre outros.
O risco, contudo, é que as referências formais acabam por trazer uma contradição a esta encenação baseada numa desdramatização. Quando, por exemplo, olha-se para obras de Marguerite Duras ou de Robert Bresson, percebe-se que o afastamento da forma clássica e tudo aquilo que lhe é postiço (psicologia, ilusionismo…) faz com que o filme abandone seus excessos em prol de chegar ao essencial de sua arte. Todo o deslocamento da forma ruma para uma unidade. Porém, o que acontece em Desterro, por sua natureza fundada em suas filiações, é que estas saltam ao olhar e acabam criando camadas de gordura com algumas imagens frouxas e afetadas, e de vez em quando cedendo a alguma piscadela bem direta.
Crime perdoado aos jovens iniciantes, diamante a ser lapidado. Há que acompanhar a carreira de Maria Clara Escobar com bastante atenção. Se há falhas e excessos na sua primeira ficção, elas apontam para caminhos interessantíssimos.
[Nota do editor]: O novo filme de Maria Clara Escobar, terá sessão especial com a presença da diretora no Recife, no dia 27 de setembro, às 19h, no Cineteatro do Parque. Os ingressos poderão ser adquiridos na bilheteria do cinema.
– Leia também crítica de Marcelo Ikeda por ocasião da exibição de Desterro no Festival de Roterdã 2020
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