46º MostraSP (2022) – A Noiva + A Filha do Caos
O cinema transnacional
Por Humberto Silva | 23.10.2022 (domingo)
Realidade que parece se impor nas realizações cinematográficas: o fenômeno da transnacionalidade.
Tem sido frequente a produção de filmes por dois, três até quatro países diferentes, dirigidos por um cineasta de um país diferente dos produtores, com atores de diversos países, em decorrência em múltiplos idiomas (isso leva à inevitável confusão no uso das legendas, mas…). A ideia de cinematografia nacional, nesses casos, acaba pulverizada.
Adento: a exigência de uma nova maneira para catalogar a produção cinematográfica (convivemos igualmente com eventos como os de “cinema francês”, “cinema italiano”, “cinema japonês” etc etc).
Um dado de cultura a ser ponderado: repensar o peso a ser posto na balança.
Com níveis diferentes de transnacionalismo, é o que ocorre com A noiva e A filha do caos.
A noiva
Temos aqui uma produção portuguesa, realizada pela Faux, dirigida por um luso/brasileiro afrancesado, Sérgio Tréfaut, filmada no Curdistão iraquiano, com um cast internacional em que se intercalam os idiomas português, francês, árabe…; ou seja: uma torre de Babel.
Tema do filme: a Guerra do Iraque. Corrigindo: com a saída das tropas norte-americanas do Iraque, o confronto entre o Estado Islâmico e o exército iraquiano. Foco: a presença de jovens franceses que abraçaram o Islamismo, o Estado Islâmico, e foram lutar no Iraque. Situação: uma jovem portuguesa, casada com um francês, converteu-se ao Islã e entrou nas fileiras do Estado Islâmico.
Drama: a jovem tem o marido fuzilado pelo exército do Iraque e ela, com dois filhos pequenos e grávida, vai a julgamento sob a acusação de terrorismo: pode ter o mesmo destino do marido.
A narrativa de A noiva é pontuada por grandes lapsos, hiatos, sugestões. Há com isso uma questão de fundo EXTREMAMENTE delicada e para mim de tratamento ruim: o filme deixa a sensação de neutralidade sem objetividade. Objetividade, bem entendido, como diria um arauto do positivismo, quer dizer sem isenção.
É uma escolha de Tréfaut, óbvio. Não é o caso, assim, de apontar para um filme que não fiz. Mas sim de dizer que A noiva revela uma posição EXTREMAMENTE diferente da minha.
O caso de uma inocente europeia que sai de casa – indícios de ser de classe média branca – e se engaja numa luta religiosa a milhares de quilômetros de sua casa e que pode encontrar a morte por fuzilamento pode ter sido visto por Tréfaut em suas andanças pelo Iraque (no release a informação do próprio diretor é que esteve mais de uma vez lá). Uma experiência assim, eventualmente, o sensibilizou.
O meio é a mensagem e não digo quem disse isso. Mas digo qual a mensagem que recebi de A noiva: inocentes franceses, ou portugueses, foram responsáveis por milhares de mortes de inocentes em nome do Estado Islâmicos, mas…, eram ingênuos, inocentes.
Paro por aqui. Um ou outro caso isolado, como o tratado no filme, levaria à reflexão sobre a complexidade da guerra, da guerra em sentido amplo, bem entendido. Mas a complexidade implica ponderar sobre as razões de fundo que levariam jovens de classe média na Europa às fileiras do Estado Islâmico. Isso simplesmente não entra no filme. E isso para mim torna A noiva muito frustrante.
No melhor dos casos, de oportunismo ingênuo para alguém que realça na apresentação a formação em filosofia na Sorbonne.
A filha do caos
Em A filha do caos, de uma produtora brasileira, Santafé Produções Cinematográficas, e de um diretor colombiano que vive no Brasil, Juan Posada, uma atriz teatral, chamada Maria, interpreta Jocasta, da peça Édipo Rei, de Sófocles.
Ela vê na rua uma mulher com uma criança morta nos braços. Passa a alimentar o sentimento, ou a compulsão, paranoia…, de ter no ventre um filho concebido pelo Espírito Santo.
JL Godard fez algo parecido… A narrativa de A filha do caos não flui de modo contínuo. O tempo narrativo é difuso. Além de Maria, outros personagens entram em cena casualmente e são quase ornamentais, sem definição.
As sequências se sobrepõem com sussurros monologais de Maria a maior parte da projeção. A encenação teatral, o cotidiano de Maria, ficam em suspensão.
Juan Posada, como Sérgio Tréfaut, confessa ter formação filosófica. E propõe um filme com tema ambicioso. No quesito plasticidade, A filha do caos impacta. Um belo preto e branco e a sensação de uma tela de Van Gogh em sua fase holandesa, de Os comedores de batata: um foco de luz embaçada, a escuridão, o contraste entre sombras e luzes.
A banda sonora, entre música sacra, Billie Holiday e jazz comercial dá a pensar no quanto as escolhas foram pensadas…
Malgrado, Juan Posada me pareceu mais preocupado com a forma – uma excessiva e exibicionista estilização das imagens. O conteúdo? Para muitos este pode até ser hermético, em consonância com o esmero das imagens: um filme concebido formal e tematicamente hermético.
Para mim, A filha do caos mostra alguém com formação filosófica fazendo cinema (as escolhas feitas, o ar de “filme cabeça”, anteveem). Ao fazê-lo, embaralha ideias expressas pelas imagens e o sentido de questões que um filme ambicioso proporia.
Sendo essa a intenção de Juan Posada, ele foi bem-sucedido. Mas eu, espectador, fiquei frustrado com o que vi.
0 Comentários