46º MostraSP (2022) – “Magdala”
A Maria Madalena da visão francesa
Por Ivonete Pinto | 23.10.2022 (domingo)
Para quem não conseguiu acompanhar a Mostra de São Paulo de forma presencial, alguns filmes estão disponíveis online, como é o caso de Magdala (2022), produção francesa assinada por Damien Manivel.
Um filme difícil de ser visto em tela pequena, diga-se. É preciso ultrapassar a barreira do escuro das imagens para enfrentar então a barreira do ritmo. Vencido isto, tenta-se colar na personagem inspirada na bíblica figura de Maria Madalena, com quem o filho de Maria teria “tido algo” (complicado nomear a relação daquela época).
A produção assume em sua sinopse que se trata de um “amor perdido”. A sinopse, aliás, é a porta de entrada para o filme, pois nos diz que desde a morte de Jesus, Maria Madalena se isolou do mundo, “seu cabelo ficou branco, ela se alimenta de frutas, bebe água da chuva e dorme entre as árvores. Sozinha no coração da floresta, ela se lembra de seu amor perdido. Ela procura uma maneira de encontrá-lo.”
E o que vemos é de fato uma senhora já bem idosa a vagar pela mata, toda esfarrapada, o que pressupõe que há algum tempo é andarilha. Com movimentação lenta (bem lenta, tipo slow motion mesmo), a vemos fazer uma pequena cruz com dois galhos e assim não perdemos o foco de que a senhora se lembra “do amado” (perdão pelo spoiler, mas Jesus morreu pregado em uma cruz). A pequena cruz aparece em diversos outros planos, meio que um fantasma, um sinal de que aquele que subiu ao céu mantem-se personagem da história.
Enredo à parte, o filme nos provoca a pensar no estilo de cinema do diretor Damien Manivel, que já vem construindo narrativas desta ordem, descoladas de maior pretensão comercial (ver O parque, 2016). Experiência contemplativa por excelência, Magdala requer concentração para acompanharmos os passos lentos de Madalena pegando um pássaro morto, gritando algo incompreensível (aramaico?), esforçando-se por conseguir beber uma gota de uma folha molhada da chuva, etc. Não é necessário descrever as raras ações. Importante é que vemos uma mulher se despedindo do mundo, tentando reter sua memória – e sofrendo com ela –, enquanto integra-se àquela natureza.
E lá pela metade do filme, que é curto, menos de 80 minutos, entra a música de Henry Purcell, O solitude my sweetest choice. Para não dizer que a escolha é aleatória, a letra fala de um ermitão que vaga admirando as árvores, os pássaros, os rios, os animais…
Mesmo atestando-se o sentido da música barroca ali, soa como uma concessão ao rigorismo narrativo anunciado, um gesto para que o espectador não desapareça, não desligue. Quem persistir, no entanto, tem a possibilidade de - e só talvez a partir desta metade do filme -, acompanhar Madalena como um voyeur que testemunha a profunda tristeza e solidão de uma mulher.
Para interpretar a protagonista, Manivel buscou Elsa Wolliaston, coreógrafa e bailarina negra. Além da idade, sua cor chama a atenção, pois que a distância do imaginário cinematográfico ocidental, que sempre pintou Madalena como mulher branca, magra, sedutora, meio fatal (teria sido prostituta, o que jocosamente autorizaria este retrato).
Basta lembrar das representações de Martin Scorsese em A última tentação de Cristo (1988), com Barbara Hershey vivendo Madalena, e Mel Gibson em seu A paixão de Cristo (2004), com Monica Bellucci como Madalena. O mais recente, Maria Madalena (2018), dirigido por Garth Davis, confirma o visual padrão desta mitologia, escalando Rooney Mara como Maria Madalena e Joaquim Phoenix como Jesus. E assim como Scorsese, Davis nega os textos sagrados e imagina um futuro para o casal, vivendo normalmente cheio de filhos.
Não é preciso acreditar ou desacreditar na mitologia oficial cristã para saber que há várias teses envolvendo Jesus e Madalena, algumas dando conta de que eles constituíram família, outras de que ela virou uma líder à frente de seu tempo e fundamental na construção do cristianismo. Porém o cinema costuma insistir no visual branco e é aí que este filme francês nos oferece uma leitura pouco usual, provavelmente mais correta em termos antropológicos, ao menos quanto à Madalena.
O título, aliás, remete à origem dela. Maria de Magdala, porque teria nascido em Magdala, uma vila de pescadores próxima ao Mar da Galileia. Se pensarmos que o filme é francês, faz mais sentido ainda que Madalena seja negra. A França tem inúmeros santuários chamados “Vierge Noires”, onde não só Madalena, como também Maria, são representadas como negras.
Os estudos mais acadêmicos, portanto, mais sérios, concluem que Jesus era do Oriente Médio, hebreu (judeu) e de pele escura. Então, o Jesus branquinho de Damien Manivel é fake.
Em uma sequência, Madalena volta no tempo e a flagramos com Jesus, ambos nus na água. Ela, jovem, é interpretada pela atriz negra Olga Mouak. Ele, vivido por Saphir Shraga, é branco, em sintonia com a representação a que estamos acostumados e que tantas vezes já foi contestada. O que o diretor quis dizer com este Jesus branco, não faço a menor ideia.
Interrelações – Magdala é um filme cujas imagens costumam-se relacionar à pintura e as chamarem de belas. Pelo ritmo lento, também é um convite para a contemplação, para o alheamento que pode esbarrar na desatenção.
Risco que correm diretores como Lisandro Alonso e Pedro Costa e alguns outros nomes que apostam em um cinema international style, direcionado a festivais, que pisam fundo na contemplação. E tal qual um Tsai Ming Liang de Jornada ao Oeste (2014), a proposição de Manivel é a do tempo estendido: no gesto, no caminhar, na duração dos planos, na poesia que emana do inefável. Na abordagem budista, a vagarosidade tinha coerência.
Para compensar, em sintonia com o universo fantástico bíblico, Manivel inclui um anjo, na figura de uma jovem com uma vela que acompanha a morte de Madalena (anja loira, por sinal, dentro da iconografia cristã padrão).
Em sua eventual contribuição para a história bíblica, Magdala, por menos que consiga simpatizantes nesta leitura, se filia à visão de uma vida “normal” que tiveram todos os personagens do entorno de JC. Ainda assim, se este enredo lhe parece bem pouco interessante, nos fixemos na proposta estética-política do diretor francês ao imaginar Maria Madalena negra e eremita. Proposta que lamentavelmente fica comprometida pelo último plano, um tanto bizarro pela ideia e pela realização de baixo orçamento. Mas, afinal, anjos moram no céu e quando voltam para lá vão voando.
Filme disponível até 2/11/2022 com limite de 1500 visualizações no Sesc Digital.
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