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Críticas

Argentina, 1985

Passando uma ditadura a limpo, com humor e profundidade.

Por Luiz Joaquim | 24.10.2022 (segunda-feira)

Exibido no Festiva de Veneza, em agosto, depois em San Sebastian, em setembro, e agora em outubro no Festival do Rio, Argentina, 1985 (Arg., 2022), dirigido e roteirizado por Santiago Mitre (coescrito com Mariano Llinás), está já ao alcance por um clique no streaming da Prime Video desde quinta-feira passada (21).

Do prestigioso festival italiano, Argentina, 1985 saiu com o título de melhor filme conforme a leitura do júri da crítica (Fipresci) e, no festival espanhol, recebeu as graças do público. De lá até aqui, o filme não para de receber elogios por onde dá as caras.

Não é para menos, o jovem (41 anos) Mitre dramatiza aqui, de forma envolvente, uma pérola sobre um evento político-social de 37 anos atrás ocorrido em Buenos Aires. Evento que é tido pelos argentinos como o julgamento mais importante da história, até então realizado, desde o de Nuremberg pós-Segunda Guerra.

Isto porque no contexto do enredo, dois anos após a redemocratização da argentina, acompanhamos o desenrolar de um julgamento civil contra os militares responsáveis pelas barbáries promovidas durante a última ditadura naquele país (1976-1983). A mesma que, estima-se, tenha matado cerca de 30 mil pessoas.

Como dois anos é muito pouco tempo para se atuar com a liberdade adequada em um país subjugado pelos mesmos militares da ditadura, ainda na ativa, Mitre nos dá uma narrativa que segue crescente em sua tensão contra o procurador Júlio Strassera (Ricardo Darín, ótimo, como sempre), indicado pelo Estado para atuar como advogado de acusação contra a junta militar.

Strassera, conhecido como “o louco”, tem ele mesmo dúvidas se chegará vivo até o fim do processo e, ainda mais assustador, teme pela segurança da esposa Silvia (Alejandra Flechner), da filha adolescente Verônica (Gina Mastronicola) e do filho mais novo Javier (Santiago Armas Estevaren).

Seu desalento só cresce quando tenta, de forma frustrada, recrutar colegas para formar seu time e descobrir que os mesmos ou temem se envolver com o caso, ou, durante o período militar, se revelaram fascistas. Numa nação dividida entre esquerda e extrema-direita (para não usar o termo ‘fascista’), Strassera vai encontrar apoio apenas em jovens advogados, alguns ainda estudantes, o que, por si só, já estabelece um tom tragicômico à questão: O mais importante julgamento da Argentina tem uma equipe juvenil contra gigantes das Forças Armadas.

Strassera (Darín, de azul ao centro), e sua juvenil equipe

E grande parte desse alívio cômico está exatamente na atuação entusiasmada dos jovens que acompanham Strasserra. O principal entre eles é o jovem professor de Direito, Moreno Ocampo (Peter Lanzani). E aqui o contraste entre o desânimo de Strassera em reunir testemunhas e provas irrefutáveis contra o alto escalão das Forças Armadas em apenas cinco meses, e a garra de Ocampo para criar um mutirão para ir atrás da solução é não apenas divertido, mas comovente.

Dessa forma, Mitre se apropria com maestria do humor nesse trabalho que parece ir de encontro ao que a maioria jovem dos espectadores da segunda década deste século quer num filme: agilidade, graça e profundidade.

Darín, em sua caracterização, dá o tom certeiro ao promotor desconfiado de tudo e de todos, inclusive do namorado da filha, e tido pela esposa (ao menos até o grande julgamento de sua vida) como um cético mal-humorado.

Aliás, que bela ambientação cenográfica, como um todo, temos aqui. Desde o sépia na cor da fotografia, ao formato do quadro de 1: 1,50, passando ainda pelo figurino e penteados daquela década.

A cereja no bolo vem na forma do texto de argumentação de acusação proferida por Strassera na conclusão da audiência, diante dos juízes, militares, ou melhor, diante de toda uma nação que o espera ouvir – com o presidente Raúl Alfonsín incluso – para sentir-se justiçada contra os anos de terror vividos.

Ocampo (Lanzani) e Strassera (Darín) afinando detalhes do julgamento mais importante da Argentina

E Mitre, mais uma vez, desenha aqui belamente a dificuldade, ou melhor, o esforço de Strassera em construir aquele que seria o seu argumento mais eloquente e definidor do julgamento; procurando evitar um tom dramático, mas, ao mesmo tempo, não se esquivando de incluir o drama das vítimas das torturas praticadas pelos militares, inclusive sobre grávidas e recém-nascidos.

É muito bom, portanto, (1) ver um filme que resgata um sentido de justiça social a favor de toda uma população e em memória de desaparecidos políticos e (2) ver um filme cujo ápice está não numa sequência de ação, ou horror, ou romance (nada contra estes), mas sim de combinação de palavras que estabelecem de maneira inquestionável e incontornável a estupidez e a barbárie que significa um governo sem limites de poder, tocada por uma ditadura militar.

Que bom seria o Brasil ter a sua versão de um Argentina, 1985 exibindo agora, antes das eleições presidências de 2022. Mas, pensando bem, quem foi que disse que isso seria possível, uma vez que os militares de nossa última ditadura não foram oficialmente julgados? Que triste, Brasil, que triste.

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