Blonde
Filmando desafeto na era do cinema de afetos
Por Luiz Joaquim | 04.10.2022 (terça-feira)
1955, Nova Iorque. São dois animais assustados, um diante do outro, numa mesa de jantar.
Ela, famosa e bela atriz do cinema, é também competente ainda que insegura. Ele, dramaturgo respeitado e celebrado na Broadway, mas perseguido pelo macarthismo norte-americano.
Ela, assustada diante do intelectual que havia recebido o Prêmio Pulitzer de Teatro, e receosa de que ele só enxergasse nela o que os estúdios de cinema vendiam sobre sua imagem. Ele, assombrado pela performance que ela, o maior símbolo sexual norte-americano, havia lhe dado num teste de elenco para uma de suas peças.
Ela, audaciosa, mas cautelosa, ousa contar a ele algumas ideias que teve sobre a personagem que gostaria de interpretar, a Magda, na peça em processo. Magda, na verdade, é um personagem real. Foi o primeiro amor do dramaturgo. Ele, abalado com a relação psicológica que a sex symbol destrincha entre Magda e uma das personagens de As três irmãs, de Tchekhov, se emociona profundamente com o que ouve e enxerga, como ninguém, o tamanho da sensibilidade artística da moça a sua frente.
Ela tem como nome de batismo Norma Jeane, mas para o resto do mundo é conhecida como Marilyn Monroe (1926-1962). Ele se chama Arthur Miller (1915-2005).
O encontro descrito acima é ilustrado em Blonde (Idem, EUA, 2022), longa-metragem dirigido pelo neozelandês Andrew Dominik (O homem da máfia), produzido pela Netflix e disponibilizado por streaming desde quarta-feira passada (28/9).
Ainda que ‘vendido’ como uma cinebiografia da mítica atriz (aqui protagonizado por Ana de Armas), o filme de Dominik é inspirado na obra de Joyce Carol Oates que é, no caso, um livre romance criado a partir de informações reais sobre a vida da bombshell.
Em outras palavras, o que Blonde mostra, ou melhor, como mostra não tem compromisso com a verdade do fato mas sim com o romance de Carol Oates. Nesse sentido, não se pode dizer que a primeira conversa íntima entre Marilyn e Miller tenha acontecido como é apresentada no filme e descrita aqui no início desse texto, mas pode-se dizer que há uma beleza incontestável no que há de romântico pelo encontro dramatizado por De Armas e Adrien Brody (como Miller), sob as coordenadas de Dominik.
Dramatização encenada, não à toa, com a fotografia do tal jantar feita por Chayse Irvin apenas com planos e contra planos fechados nos atores. Num P&B introspectivo e em sutil contra-plongée sobre Marilyn, desglamourizada, lhe dando, cinematograficamente, a grandiosidade intelectual e sensível para a arte que a história, ou melhor, os estúdios não se interessaram em revelar.
Há um fenômeno curioso a respeito de Blonde após sua chegada ao mercado. A obra vem recebendo uma enxurrada de críticas depreciativas pela mídia especializada no mundo todo, ainda que, em sua primeira exibição, há menos de dois meses no Festival de Veneza 2022, tenha sido ovacionada e aplaudida por mais de dez minutos, com destaque (merecido) para o protagonismo de De Armas.
Em síntese, as críticas contra a realização se concentram, principalmente, em mencionar à forma como as implicações sexuais na vida da atriz são representadas. A acusação recorrente é a de que o filme explora a imagem de Marilyn, sendo desrespeitoso, desnecessário e sem um sentido específico. Há ainda uma condenação prévia quanto ao tema ‘aborto’, pela suposta representação antiaborto presente no enredo.
De fato, há um reiterada representação do aborto disposta no filme por três situações distintas: numa delas, cujo fruto veio de sua relação com Cass, filho de Charles Chaplin (Xavier Samuel), Marilyn se vê na condição de interromper forçadamente a gestação em função das filmagens de Os homens preferem as loiras (1952); depois por um acidente, a atriz perde o desejado bebê que nasceria de seu amor com o já marido Arthur Miller; e, por fim, já no início dos 1960, vemos Marilyn, numa representação que sugere um pesadelo, ser sequestrada por homens invadindo a sua casa para tirar-lhe o filho em formação no ventre, cujo o pai, sugere o filme, seria do presidente John F. Kennedy (Caspar Phillipson, o mesmo ator que encarnou Kennedy em Jackie).
As queixas quanto ao assunto, entretanto, parecem não ter atentado para a distinção que há aqui na alusão entre o aborto como algo não desejo pela protagonista e o discurso antiaborto. Em Blondie, Marilyn sofre porque deseja o filho em gestação, e não deseja o aborto. Seu sofrimento não é pelo inverso da situação.
Assim sendo, nada mais coerente do que a representação desse drama de uma maternidade interrompida como a vemos aqui. E… ok… concordamos que Dominik doura a pílula de sua poética com Marilyn ‘conversando’ com o feto ainda em seu ventre e, a certa altura, com ele lhe respondendo. Mas, em termos lúdicos, o que Dominik faz é humanizar o feto.
E por mais que um projeto antiaborto talvez possa enxergar perigo em tal expressão – humanizar o feto –, ela é absolutamente coerente com uma grávida que deseja dar à luz, como assim é apresentada Marilyn nas duas primeiras situações descritas mais acima.
Não há ingenuidade quando entendemos que acontece uma gigante revolução psicológica cercando a cabeça daquela que, sem esperar, se descobre gestante, mesmo sendo a gravidez resultado de uma relação amorosa. E tamanha revolução, claro, amplia a suscetibilidade às mais diversas influências. Logo, o tema é delicado e, nesse assunto, o melhor é mesmo aprendermos com mulheres especialistas.
E é, também, inegável como Blonde representa uma progressiva via crucis percorrida pela protagonista, afundando em um espiral de sofrimento e abusos na qual ela se percebe presa. O progressivo e cumulativo sofrimento de Marilyn que se estende pelos 166 minutos do filme certamente será insuportável para alguns espectadores, em particular aos fãs da loira mais famosa do cinema.
Naquela que é certamente a mais graficamente forte circunstância de abuso sexual sugerida pelo filme, Norma Jeane é levada por federais para um encontro secreto, num hotel, com JFK. A cena inicia humilhante desde a sua condução ao quarto, explodindo em forma de constrangimento no sexo oral à força imposto pelo presidente dos Estados Unidos.
Mais uma vez, Dominik escolhe um enquadramento particular, mas agora propositadamente depreciativo, em close no rosto da personagem durante o ato enquanto escutamos sua voz em off questionando a si própria o que a fez chegar naquele lugar. O deprimente impacto da triste cena, infelizmente, é embaçado pela inserção de uma espécie de humor equivocado, relacionando a fálica situação com mísseis, cujo processo de lançamento nos EUA é transmitido por uma tevê ligada no quarto do presidente.
É possível até imaginar a proposta do diretor em representar a triste situação – incluindo o humor barato – com a ideia de um filme soft-porn, quando escutamos Norma Jeane refletir em off (“e possível interpretar tudo”), somado ao zoom out, com o enquadramento ampliando e ‘saindo’ do quarto de hotel para nos revelar uma plateia de cinema vendo a sequência sugestivamente ‘barata’.
O problema parece ser que, a partir do zoom in, com a enquadramento voltando a ‘entrar’ no quarto, reencontramos Marilyn sofrendo e com o humor na tevê ainda presente enquanto a atriz continua padecendo. É realmente uma solução que parece não se encerrar bem em si própria.
Ao contrário de outra, anteriormente mostrada, na qual Dominik parece incomodar pelo motivo certo – ainda que também venha recebendo críticas por ela.
Acontece na representação das filmagens nas ruas de Nova Iorque para a cena do vestido esvoaçante em O pecado mora ao lado. Em Blonde, a sequência é explorada longamente com De Armas sob vários ângulos. O que parece ser reiterativo, abusivo e vazio ganha corpo com o último plano subindo e revelando um mar de fotógrafos e outros homens, com olhos esbugalhados e urrando em câmera lenta, enquanto a trilha-sonora de Nick Cave dá o tom melancólico e desonroso daquela violência masculina, representado uma espécie de estupro coletivo pelo olhar.
Pode-se dizer que a partir da representação da tal cena em Blonde, nunca mais a sequência original de O pecado… será vista pela perspectiva da graça inocente, mas sim pelo, certamente, desconforto que a tímida atriz sentia ao ser exposta assim em público.
E, ainda, como provocação estética, Andrew Dominik com o seu fotógrafo Chayse Irvin alternam diversos formatos ao longo do filme (passando pelo plano 1,85:1; o clássico, do início do cinema sonoro, 1,37:1; e o CinemaScope 2,39:1), sem falar da utilização do P&B e da cor em momentos também estratégicos.
As alternâncias dos formatos parecem firmar comunicação entre determinadas épocas na vida de Marilyn com a respectiva representação tecnologia do cinema de então. As escolhas, entretanto, parecem também se relacionarem com o estado emocional da atriz. Para acessar melhor as intenções aqui, seria necessária mais de uma revisão.
Blonde, enfim, não é um filme fácil, nem tampouco um filme descartável.
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