Contatado
Cambaleando na própria fé
Por Yuri Lins | 13.10.2022 (quinta-feira)
Uma terra permeada por uma mística alienígena, cultos criados para esperar a vinda dos seres do espaço, credos que olham para a realidade física do mundo e encontram sinais de uma dimensão além do mundo. Mais do que isso: toda uma economia que se cria ao redor do fascínio; caravanas de turistas que rumam para os (supostos) aeroportos dos OVNIS; comércio de DVDs com as pregações de líderes religiosos ligados aos ETs; técnicas sexuais telepáticas vendidas como conhecimentos de outros planetas. Todo este caleidoscópio está em Contatado (Per./Ven./Bra./Nor., 2020), terceiro longa-metragem da realizadora Marité Ugás e que acaba de ganhar as salas de cinema do Brasil.
Na narrativa, Aldo (Baldomero Cáceres), nos anos 1980 era conhecido como ‘Ademar’, o líder de um culto que pregava a vinda dos alienígenas. Com o passar do tempo, Aldo perde a sua fé e passa a viver recluso, tentando ao máximo deixar sua a antiga persona no passado. Contudo, ele é localizado por Gabriel (Miguel Dávalos), um jovem que idolatra Ademar, mesmo que não tenha vivido nos tempos em que o culto funcionava, e que o incentiva a voltar a pregar. Enquanto Aldo reflete sobre sua identidade como uma fraude e pondera sobre o seu retorno como ‘Ademar’, Gabriel abraça seu papel como jovem aprendiz enquanto tenta adaptar os ensinamentos de seu mestre para os tempos atuais.
O grande trunfo de Marité Ugás está na forma como ela consegue captar a realidade simbólica que a paisagem peruana contém. O seu filme é uma janela que absorve com muita atenção a complexidade que existe naquele microcosmo. Numa sequência que flerta diretamente com o documental, Gabriel grava com seu celular as falas de diversas pessoas que esperam assistir à chegada dos OVNIS em um descampado. Na ficção, Gabriel e sua câmara, interagem com uma massa humana real e imprime, neste jogo em que as fronteiras entre ficção e documentário ficam nubladas, assim como a riqueza cultural e a peculiaridade dos romeiros adoradores de alienígenas.
Seu jogo é mais profundo e dá um passo além de uma representação exótica da região. Quando Aldo, caminhando a esmo em algumas ruínas da civilização Inca, passa a ser confundido com um guia turístico, ele se põe a narrar as histórias do passado em troca de algum dinheiro. Mais à frente, quando ele Gabriel estão em outras ruínas – e aqui Marité filma-as como ilhotas antigas em meio aos prédios modernos. Gabriel, na sua tentativa de trazer seu mestre de volta à ativa, demostra para Aldo que ainda há pessoas que anseiam seu retorno: dois turistas, crentes de ‘Ademar’, diante da figura decadente de Aldo, não o reconhecem como o líder da fé que seguem, mas deixam evidente a ânsia pelo retorno do guru.
Aldo habita o seu mundo como um espectro daquilo do que fora anteriormente. Caminha não só nas ruínas da história e das utopias, mas em seus próprios escombros emocionais. É no contato com o outro (aqui, Gabriel), justamente o outro que é capaz de enxergá-lo não como um extrato da decadência, mas ainda como portador de tudo aquilo que fundamentou o seu mito, que ele pode reanimar o seu espírito e alinhar, ao menos por um instante, o que é o homem e o que é o herói.
Todo o solo contém, sedimentadas em suas camadas geológicas, os restos e os rastros das batalhas humanas, suas dores e alegrias; contudo, o solo também é um palco onde projetam-se a fé e a imaginação daqueles que buscam alguma transcendência. No mesmo campo, na mesma terra fincada do presente, coexistem o passado das contendas e a fabulação de um futuro. Nas suas deambulações pela cidade, no seu contato com os habitantes locais, escondido em plena luz do sol, Aldo é o elo entre o passado e as possibilidades do futuro. Sua readequação ao próprio mito é o processo que evidencia, no corpo do filme, as raízes e as promessas transcendentais daquele espaço e daquela cultura.
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