Mais que Amigos
O virgem (de amor) de 40 anos
Por Luiz Joaquim | 06.10.2022 (quinta-feira)
No primeiro date entre Bobby (Billy Eichner) e Aaron (Luke Macfarlane), o segundo pergunta ao primeiro qual é o melhor filme de todos os tempos. Bobby diz que não tem um melhor filme e devolve a pergunta para ouvir de Aaron: “Se beber, não case!” (2009).
Bobby, 40 anos, gay, cis, branco não acredita que Aaron, também perto dos 40, gay, cis, branco, esteja falando sério, considerando o teor heterossexual do megasucesso de 2009. “Na primeira fala do filme eles dizem: ‘Chamando o Dr. Boiola!’. Na primeira fala!”, contesta Bobby. “E isso nem faz muito tempo”, complementa indignado.
De fato, entre a comédia aloprada de Todd Phillips e o filme dos protagonistas acima – Mais que amigos (Bros, EUA, 2022), entrando em cartaz hoje (6) –, temos uma distância de apenas 13 anos (13!) mas a distância moral entre a consciência da sociedade de então para a atual, com relação às conquistas do universo LGBTQIA+, parece bem maior do que a temporal.
Tudo bem que os EUA tiveram um Donald Trump e o trumpismo no meio do caminho, assim como, por aqui, temos o bolsonarismo assombrando as pessoas sérias, independente da sua orientação sexual. Mas, mesmo assim, é fácil entender que, hoje, filmes heteronormativos não terão nunca mais o êxito que teve Se beber, não case! se não se dobrarem a esse respeito e à consciência social de que falamos.
Relembrada essa pequena distância temporal entre a comédia hetero e a atual comédia românica gay, podemos dizer que Mais que amigos já chega fazendo história e, sem sombra de dúvida, vai virar hit e referência no cinema mainstream quando o assunto for os divertidos desencontros de um casal gay se apaixonando.
Coroteirizado por Eichner (que é também produtor executivo aqui) e Nicholas Stoller, o enredo é esperto o suficiente para desenhar como protagonista um cara como Bobby: cético e cínico não apenas sobre a ideia heteronormativa a respeito do que seria o amor, mas também com a própria lifestyle de homens gays. “Fomos inteligentes o suficiente para fazermos pensarem que somos muitos inteligentes, mas, na verdade, nem somos tão inteligentes assim”, provoca Bobby numa conversa.
Noutra ocasião, numa roda de jantar, questiona a oficialização de um trisal (‘casal’ de três pessoas) de amigos seus. Para o autosuficiente Bobby, essa história de amor não é para ele nem para o seu grupo, cuja dinâmica de relacionamentos não dialoga em nada com a dos heterossexuais.
Ter um personagem como Bobby abrindo Mais que amigos, ou seja, um gay que reforça alguns estereótipos (ainda que ele os odeie) que são próprios dos heteros é muito eficiente porque coloca tal plateia ao seu lado.
É aí que está a suprema sagacidade da produção que chega esta semana aos conservadores multiplex em shoppings centers do Brasil (e do mundo). Mais que amigos não está aí apenas para um público LGBTQIA+, mas para todo e qualquer público. E na condução de um enredo que provará a Bobby que o amor entre duas pessoas não tem relação com orientação sexual é também um enredo que quer provar essa mesma proposição aos espectadores heteros, incluindo os mais preconceituosos.
É por isso que, sendo o humor (de qualidade) uma ferramenta de extrema competência – e tal humor está bem representado aqui –, Mais que amigos deve ficar marcado na memória da atual jovem geração que vai ao cinema, além de gerar, no futuro, vários sub-Mais que amigos.
Não que não haja filmes no mesmo tom já realizados pelo cinema, mas não com a benção e distribuição (da Universal) em escala mundial como esta comédia de Eichner e Stoller.
E mais: Bros, estando em cartaz nas salas tradicionalistas onde estará (e, posteriormente, chegando aos grandes streamings que chegará em poucos meses), vai não apenas divertir as pessoas – toda ela que se permitir ver esse filme –, mas irá também acariciar muitos/as/es jovens (e adultos, porque não) que já se entendem como não-hetero mas temem assumir a sua íntima verdade para o mundo.
ENREDO – Bobby é um podcaster que comemora a conquista de 1 milhão seguidores. Comunicador eloquente e divertido sobre o universo LGBTQIA+, ele celebra também o convite que recebeu para presidir a direção artística do primeiro museu de Nova Iorque inteiramente dedicado à história de sua comunidade. Ele trabalha junto a um corpo curatorial que inclui um bissexual, uma mulher preta trans, uma lésbica, um homem preto trans e uma agênero.
No pacote das piadas autoparódicas, Eichner escreve as melhores situações aqui encenadas nas reuniões da tal diretoria do museu, quando o grupo precisa decidir qual será o tema que comporá o último recinto do museu. Cada um dos integrantes tenta puxar a sardinha para a sua identidade e claro, as farpas e indiretas nunca têm fim.
O cômico aqui é que Mais que amigos coloca o espectador no lugar daquele que sabe o quão ingênuo seria uma disputa de ‘hierarquia de sofrimentos’ entre pessoas assim, enquanto os personagens do filme parecem não apenas não entender isto, mas também brigar por isso. E a briga pelo posto dos mais injustiçados é feia, quer dizer, engraçada, de cair da cadeira em sua comicidade.
Já na vida pessoal de Bobby, entre uma transa e outra agendada com alguns usuários do aplicativo Grindr, ele vai a uma boate gay e conhece Aaron, advogado que adora CrossFit mas não se relaciona com as pessoas por aplicativos de sexo. Aaron intriga Bobby que não compreende por que está intrigado (para além da beleza do advogado) e em pouco tempo os dois estão sexualmente se desejando.
Não demora muito para o casal ir para a cama, mas, para o primeiro beijo na boca acontecer, sim. O volumoso espectador hetero dos multiplex talvez ache curiosa tal situação entre os dois apaixonados que relutam em se entregar aos sentimentos. Mas Bobby, numa conversa entre amigos ainda no início do filme, adianta que a dinâmica no relacionamento sexual entre heteros e homossexuais é diferente.
A propósito, Mais que amigos deverá apresentar uma das sequências mais divertidas sobre preliminares sexuais. Ela acontece por ocasião da primeira transa do casal já rendidos à paixão um pelo outro.
Só que Mais que amigos, ainda que revolucionário no conteúdo, dentro de uma vitrine mainstream do cinema, é careta na forma. Desenvolve-se no esquemático “casal improvável se conhece / se apaixona sob dificuldades impostas ao namoro / vivem ótimos momentos juntos / brigam / voltam / e são felizes para sempre”.
Quanto ao “para sempre”, o cético personagem de Eichner consegue também propor uma excelente piada ali já nos últimos minutos do festivo final do filme.
E vale um último recado aos heteros: Aqueles que estejam pensando que nunca pagariam para ver um filme sobre um cômico romance gay, é bom saber que vocês estão perdendo a rara oportunidade de rir nos multiplex com piadas de muito bom nível (incluindo sarcasmo contra filmes em que heteros interpretam gays como O segredo de Brokeback Mountain; Bohemian rhapsody e Ataque dos cães) além de perderem, claro, a oportunidade de desconstruir um pouquinho o seu preconceito.
Como curiosidade, bom registrar que Billy Eichner é o primeiro homem declaradamente gay a coescrever e estrelar seu próprio grande filme de estúdio, apresentando um elenco principal totalmente LGBTQIA+, incluindo Luke Macfarlane (Agentes espaciais), Ts Madison (série The Ts Madison Experience), Monica Raymund (série Chicago Fire), Guillermo Díaz (série Escândalos: Os bastidores do poder), Guy Branum (série The Other Two) e Amanda Bearse (série Um amor de família). O filme é produzido por Judd Apatow, Nicholas Stoller e Joshua Church (coprodutor de Descompensada, Quase irmãos).
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