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Festivais

55º Brasília (2022) – Mato Seco em Chamas

Adirley propõe catarse para além do mero dado de retórica ou de eficiência estilística.

Por Humberto Silva | 15.11.2022 (terça-feira)

Sobre Mato seco em chamas, cuja direção Adirley Queirós divide com Joana Pimenta, há dois pontos que valem destacar: o híbrido ficção e documentário; a fantasia distópica.

Antes, porém, algumas informações gerais. Exibido no Festival de Berlim deste ano, gerou expectativa em razão do trajeto de Adirley, que tem se notabilizado pela eficiente fusão entre ficção e documentário com fundo distópico: o caso de seu filme mais cultuado, Branco sai, preto fica (2014), que se destaca na lista das obras mais marcantes da década passada.

Outra informação importante. Trata-se de um projeto ousado do ponto de vista da produção. Branco sai…, a esse respeito, é modesto, centrado em um drama nuclear com foco num acontecimento trágico. Mato seco…, por sua vez, assume a perspectiva de um filme coral, com uma diversidade de personagens e subtramas que articulam os acontecimentos vividos.

O ponto de partida é a corrida por um produto, a gasolina, que mobiliza a personagem Chitara, que se destaca inicialmente num grupo de motociclistas. Mas a narrativa não se detém nela. Paralelamente, e com motivações distintas, entram em cena Léa e Cocão, irmãos de Chitara. Entre eles, como dado comum, relações conflituosas com a justiça e dificuldades de sobrevivência.

Léa na garupa de Cocão: dificuldades de sobrevivência

Seguindo a opção que funde ficção e documentário, Adirley exibe personagens reais que ficcionalizam suas próprias experiências de vida. Como esperado, traços do cinema verdade a lá Jean Rouch são percebidos entre as influências de Adirley: os diálogos assumem como característica revelar uma realidade vivida pela exibição do artifício, pelo falseamento; simultaneamente, o falseamento, a encenação, traz à tona a condição de fato em que os três irmãos vivem.

A se ressaltar que, assim como ocorreu com Branco saí…, esse é um procedimento que Adirley realiza muito bem em Mato seco… O espectador é convidado a entrar num “jogo de linguagem” em que se requer atenção para separar “realidade” e “ficção”. Com isso, novamente, Adirley aborda o sinuoso problema da representação no cinema. A multiplicação dos espelhos, inevitável, joga com a espetacularização das imagens e com a crueza do que é visto. A catarse, portanto, em termos aristotélicos, deixa de ser mero dado de retórica, ou de eficiência de estilo.

Mato seco…., seguindo a perspectiva coral, não se atém aos três irmãos e ao trânsito deles à margem, reivindicando um Partido do Povo Preso. Sem marcação precisa, e nexo à primeira vista evidente, despontam Andreia em um culto evangélico, a banda Moleka 100 Calcinha numa performance, e manifestações bolsonaristas ecoando o slogan “Deus acima de tudo, Brasil acima de todos”.

Andreia, liderando motoceata pelo Partido do Povo Preso.

Mato seco… desloca, então, o foco de atenção. Tem-se, com isso, um cenário presente: a polarização ideológica que marca o país nos anos Bolsonaro e o papel influente nas instâncias de poder dos cultos evangélicos. Projeto ambicioso, Adirley conta para essa empreitada com os talentos de Joana Pimenta, na direção de fotografia, Denise Vieira, na direção de arte, e Cristina Amaral, cuja montagem dá o sentido de unidade que os episódios fragmentados requerem.

O mundo evangélico, sorrateiramente, com o correr dos anos, foi ocupando espaço em nossa cena social e religiosa. Antes tratado de modo lateral, hoje é incontornável objeto de estudo da sociologia do comportamento religioso. A produção cinematográfica brasileira não é insensível ao tema. O próprio Edir Macedo, dono da Igreja Universal, tem no cinema uma força aglutinadora.

Mas, bem entendido, colocar em cena escolhas religiosas merece todo cuidado. O risco de assumir preconceitos, fortalecer marginalizações e instigar conflitos é notório. À medida que estrutura o roteiro de Mato seco… com lados antagônicos, num momento polarizado de nossa vida política, Adirley expõe uma realidade presente da qual não podemos escapar: a promiscuidade entre apelo religioso nas esferas de poder e os pressupostos de uma sociedade laicizada – voltamos dois séculos ao tema da tolerância religiosa, que ocupou páginas de Voltaire.

O acento no presente faz que possamos ver Mato seco… como um retrato de nossos dias. Contudo, igualmente, estamos diante de uma fantasia distópica. O cinema brasileiro, com essa perspectiva, tem revelado obras emblemáticas. Tenho em mente Bacurau (2019), de Kleber Mendonça Filho, e Carro rei (2022), de Renata Pinheiro.

A distopia – representação negativa de uma sociedade desejada – nos coloca profundos questionamentos sobre o futuro. Ou seja, embora se ponha como inquietante retrato do presente, em que se intercalam realidade e ficção, Mato seco…, por meio de uma narrativa distópica, em momento algum subestima a força, antes subterrânea, da promiscuidade entre religião e instâncias de poder.

Com efeito, Mato seco… é um filme que, ambicioso, exige reflexão sobre os rumos que o país pode tomar. Como, amanhã, sem preconceito, dialogar com uma forma de religiosidade, a dos evangélicos, num cenário de tolerância? Essa, assim me parece, a questão que perpassa pelas intenções, subliminares ou não, de Adirley Queirós.

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