55º Brasília (2022) – noite #2 (curtas)
Curtas-metragens para rever?
Por Humberto Silva | 16.11.2022 (quarta-feira)
– acima, em foto de Paulo Cerqueira, equipe do curta Nossos passos seguirão os seus… apresenta o filme no Cine Brasília.
Seguindo a programação do 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, vimos ontem dois curtas para os quais indago se os reveria. Foram: Nossos passos seguirão os seus…, dirigido por Uilton Oliveira, e Anticena, de Tom Motta e Marsa Arraes.
Num festival de cinema – em todo festival – vemos em pouco tempo em ritmo de maratona filmes atrás de filmes. Há aqueles que de cara sentimos, eu, necessidade de rever para apreciar melhor com mais tranquilidade; há também muitos que, passado o evento, serão vagamente lembrados ou mesmo esquecidos. Os títulos já dão indícios de esforço de memória na manhã seguinte à exibição. Dos de ontem, caso de Nossos passos…
Nossos passos seguirão os seus… – É um curta em que Uilton Oliveira se apresenta como historiador, negro (ou preto, conforme a conotação), que lança luz sobre um momento da história do movimento operário brasileiro, apagado pela história oficial, que teve como protagonista Domingos Passos. Passos foi um militante anarquista negro carioca com intensa atuação na última década da Primeira República. Encarcerado no final desta década, foi dado como desaparecido. Não se tem registro de sua morte.
O título do filme traz explicitamente o engajamento de Uilton. Com ele, o engajamento, a importância de colocar em cena a atuação de um militante negro que foi oficialmente esquecido, e assim sua figura lhe serve de símbolo: seguir seus passos, na luta pelo movimento operário e pela causa negra um século depois. Nossos passos… é, portanto, um filme engajado que visa resgatar um personagem simbólico.
Uilton se apoia em imagens de arquivos extraídas de jornais e na encenação de trechos de pronunciamentos de Domingos Passos. Com isso, ele procura construir e dar sentido à sua militância; assim como exibir que sua atuação não passou despercebida à época… Ou seja, o hoje esquecido ativista operário anarquista negro deixou registros que tornaram possível o filme.
A iniciativa de Uilton é importante na medida em que se tem em vista a necessidade de se reescrever a história, na medida em que a história exige revisão em momentos cruciais com personagens cuja relevância acabou apagada. Para quem jamais ouviu o nome de Domingos Passos, seu curta cumpre esse papel. Sob esse aspecto, em resposta à minha indagação inicial, vale rever Nossos passos… (inevitável ter presente Domingos Passos sem lembrar do igualmente negro João Cândido, líder da Revolta da chibata em 1910).
Ocorre que entendo Nossos passos… principalmente como um aperitivo. O formato curta não dá conta da grandiosidade do personagem que Uilton deseja resgatar. A atuação de Passos se dá num momento de efervescência do movimento operário conduzido pelos anarquistas na Primeira República. Momento em que, conforme a história oficial, o movimento foi forte em São Paulo, na Mooca, mas não no Rio de Janeiro.
O filme de Uilton, creio que até por conta da condensação na minutagem (13 min.), não traz dados para que o espectador a quem se destina entenda o movimento operário no Rio de Janeiro; não entenda, de modo preciso, dissenções entre anarquistas e comunistas, que levaram, no Rio de Janeiro, à fundação do PCB (Partidão) em 1922. A história do anarquismo em São Paulo e do Partidão está na história oficial.
Sem esse dado, não se entende a fragilidade dos anarquistas e, em decorrência, como os comunistas se impuseram como força dominante à esquerda. E, sim, menos a “história oficial” e mais os comunistas enterraram lideranças anarquistas no subterrâneo da história. No desejo de reescrever a história Uilton inscreve os comunistas como parte da elite que escreveu a história oficial?
Anticena – O propósito de Tom Motta e Marisa Arraes com Anticena pode ser considerado tendo em mente as inúmeras possibilidades que hoje dispomos para filmar: a câmara de um celular abre caminhos para as mais variadas iniciativas.
No caso, o cotidiano de um motoboy que filma suas entregas. Ou seja, ele exerce uma dupla função: a de um profissional no mercado de consumo e a de cinegrafista. Nisso, uma curiosidade, a do registro fílmico como obsessão em nossos dias. Não há nesse registro senão, na maior parte das situações, uma finalidade de cunho narcisista: o encantamento com a própria imagem.
Anticena poderia ter apontado para esse caminho e propiciar uma discussão, para mim inquietante e oportuna, sobre a compulsão fetichista para acender a câmara do celular; poderia, além disso, com o trabalho do motoboy, gerar discussão sobre as condições trabalhistas, nas quais este é explorado e vive em constante tensão no equilíbrio sobre duas rodas entre uma entrega e outra.
Mas Anticena oferece – assim o percebo – situações de mero entretenimento sobre o ato de filmar. Fica, portanto, aquém do que sugere e poderia ser explorado. Há, para não ser injusto, a figura de um cozinheiro e cinéfilo desempregado. Mas suas intervenções assumem o viés anedótico. Sua aparição é circunstancial, com piadas com citações sobre a realização de um filme.
O que temos então é um curta que se, por lado, nos mostra em tom de brincadeira experimental a infinidade de possibilidades de filmarmos e sermos filmados hoje, por outro lado, se retém na brincadeira, no entretenimento como finalidade em si. Sobre minha indagação? Anticena é um curta que passa. Não teria motivação para revê-lo. Seu senso de necessidade de discussão sobre registro documental do cotidiano sem importância notável, no entanto, é digno de nota. Mas fica nisso.
É uma pena em razão da ideia que o filme sugere e que poderia ser oportunamente explorada. A esse respeito – o que Anticena sugere – fica de minha parte modesta sugestão a que seus realizadores não parem na anticena. O motivo de Anticena acena para um bom ponto de partida.
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