55º Brasília (2022) – noite #3 (curtas)
Experimentação e misticismo em dois curtas metragem
Por Humberto Silva | 17.11.2022 (quinta-feira)
Dois curtas exibidos na programação do 55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro me impressionaram pela aposta na experimentação e pelo teor místico: Calunga maior, de Thiago Costa, e Sethico, de Wagner Montenegro. Nos títulos, já a curiosidade sobre o que essas palavras significam, e qual a mensagem que elas trazem.
Antes de tratar dos filmes, vale ressaltar algumas curiosidades sobre seus realizadores, que acabam determinado o sentido dos propósitos de ambos. Thiago Costa e Wagner Montenegro têm trânsito lateral no cinema. Thiago é designer, poeta, e desenvolve um trabalho que tem como ponto forte a pesquisa em torno de manifestações religiosas de matiz africana. A direção, propriamente, é mais uma de suas múltiplas atividades. Em síntese: a realização de um filme agrega aos seus interesses culturais amplos. Wagner, por seu turno, tem origem mais fortemente estabelecida nas Ciências Sociais, nas quais desenvolve pesquisas em antropologia e arte educação com a religiosidade africana, do mesmo modo, como ponto de apoio. Daqui, um pulo para o teatro. Mais especificamente: ele atua no Núcleo em Experimentações em Teatro do Oprimido.
Vemos, com isso, que ambos chegam ao audiovisual – o cinema – como derivação do trabalho que realizam em outros campos da cultura. Essa ampliação do campo cultural traz enormes vantagens para os filmes que fizeram. Ao mesmo tempo, por outro lado, se pode notar que o experimentalismo em Calunga maior e Sethico se ressente de certo “amadorismo” – inevitável para quem o cinema é um ponto de contato no meio do caminho.
Amadorismo, bem entendido, não é problema; é problema, assim entendo, negá-lo quando se o observa. Ambos, para mim, parecem deslumbrados, daí o amadorismo, com experimentos que na década de 1970 foram pedra de toque, com outras motivações, nas obras de José Agripino de Paula, Arthur Osmar etc.
Isso para dizer que no aspecto experimental não há propriamente novidade em Calunga maior e Sethico. Mas, justamente com a experimentação, que tipo de diálogo seus curtas desejam estabelecer? Numa impressão inicial, daí o amadorismo, a impressão de que ambos não se dão conta disso. Quando são baixados os créditos em seus filmes, tendo os “créditos” dos filmes de Agripino e tais, a sinalização do que foi a experimentação lá e cá.
Há, de qualquer forma, um dado que liga Calunga maior e Sethico e que efetivamente os tornam experimentos singulares. São filmes com forte apelo sensorial, de expressividade plástica e marcados pela religiosidade africana em sentido amplo. Visto que não há novidade na religiosidade africana no cinema brasileiro, o tratamento que ela recebe nesses dois filmes é incomum.
Calunga maior, na língua bantu, é o grande mar atravessado pelos africanos que foram escravizados (mas esta é também uma palavra que admite outras traduções…). Com efeito, é na preservação dessa cultura (filosofia, religião…) que Thiago Costa se apoia para realizar seu filme, que assim se apresenta como expressão visual da filosofia Bantu (filosofia que não traz o mesmo sentido do da grega, que tem no logos o ponto de apoio). A compreensão (o logos?) de que as imagens exigem, pois, a codificação do cosmograma Bantu. Vale dizer: é um filme para iniciados.
O mesmo pode ser dito de Sethico, que se inspira na filosofia Kemética do antigo Egito (um neopaganismo hierarquizado que supõe ritos de iniciação) e traz uma figura mítica que usa uma máscara da etnia Fang, numa alusão a Seth, deus egípcio que protege a humanidade do caos. Graças a seu trabalho, o mundo não é devorado pelo caos. Seth é propriamente o juiz e Sethico o julgamento que destrói o mal cuja origem é o caos (essas linhas superficiais, bem entendido, anteveem o quanto de ocidentalização pode esconder o que seria a prática Kimética). Assim como Calunga maior, pois, Sethico é um filme para iniciados.
Do ponto de vista religioso, ou de um misticismo explícito, Calunga maior e Sethico trazem o problema antropológico e cosmológico da alteridade. Podem até ser admirados de uma perspectiva estética, mas são filmes que, de fato, chamam a atenção para a necessidade de se lançar luz para cultos de matiz africana que estão na base de nossa história. Ou seja, neles o apelo para vermos um mundo simultaneamente próximo e distante.
O que, não obstante, me parece notável. O quanto Thiago Costa e Wagner Montenegro não se deixam contaminar pelo fetiche da aldeia global e assim não ter no espectador um turista cultural encantado com o exótico? O quanto eles assumem que naquilo que chamamos filosofia Bantu, Kimética há tantos matizes quantos há de grãos de areia no mar? (para os fiarmos nos gregos, entre Platão e Aristóteles há um grande mar…) Nesse sentido, infelizmente, seus filmes podem não passar de curiosidade enigmática num importante festival de cinema.
0 Comentários