E.T., O Extraterrestre – 40 anos
40 anos de um clássico no qual os adultos é que são os alienígenas
Por Renato Felix | 23.11.2022 (quarta-feira)
Em 1982, os filmes que estavam completando 40 anos eram filmes como Casablanca, A estranha passageira, Soberba, Bambi. Como filmes assim eram vistos em sua quarta década? Como mitos distantes, ícones de um passado remoto do cinema? Como eram vistos em 1982 especialmente por quem assistiu a eles na época da estreia? Será que E.T., o extraterrestre, que completa 40 anos este ano e voltou aos cinemas este mês, evoca sentimento semelhantes? Que ideia ele desperta em quem não viu o filme em seu lançamento? E quem viu há quatro décadas o terá como um filme de “outro dia mesmo”? Talvez mais do que esse nosso espectador imaginário que, em 1982, assistiu Casablanca na pré-estreia em 1942?
Resumindo: E.T. é tão clássico agora quanto os filmes de 1942 eram em 1982? Trata-se, claro, de uma pergunta com muitas subjetividades. Entre as variáveis a serem pesadas está a questão do acesso ao filme. Em 1982, um filme de 40 anos antes só poderia ser visto pegando alguma reprise na TV ou retrospectiva no cinema. E.T. ficou pouco tempo indisponível para quem quisesse vê-lo: Spielberg resistiu por um tempo à ideia, mas o filme acabou lançado em fitas para videocassete em 1988, depois vieram as exibições em TV (no Brasil, no final de 1990), os lançamentos em DVD e blu-ray, no streaming (atualmente está no Prime Video e no Telecine). Em 2020, a Band exibia o filme quase uma vez por mês.
Ou seja: E.T. nunca esteve distante de quem quisesse assisti-lo. Talvez por isso pareça “menos antigo”? Não tão clássico quanto Casablanca já era quando o próprio E.T. chegou aos cinemas? Talvez isso tenha algo a dizer sobre nossa relação com os filmes e com o passar do tempo nessa era de aceleração.
A verdade é que, o filme pelo filme, predicados não faltam para que ocupe seu lugar nesse panteão. Em E.T. , Steven Spielberg conseguiu um equilíbrio admirável: o diretor se esmerou para fazer cada plano bonito, interessante, instigante, mas sem que, com isso, tudo acabe ficando um tom acima. Grande narrador, ele mantém a discrição na maioria dessas elaborações para que a história contada se sobressaia.
Por exemplo, a mãe das crianças (Dee Wallace) encontrando as crianças na sala fantasiadas para o Halloween. Ela não apenas entra na sala: vem pelo corredor da casa, no escuro, para que vejamos apenas sua silhueta e só quando ela entra na sala vemos que ela não está vestida sobriamente, como todo dia, mas ostenta uma ridícula fantasia de oncinha.
Em outro momento, o menino Elliott (Henry Thomas) caminha na floresta procurando sinais da misteriosa criatura que apareceu no seu quintal e deixando por lá uns doces para atrai-la. Num travelling que o acompanha, o fundo se descortina para mostrar, lá atrás, um homem misterioso que também procura a criatura.
Ou todas as vezes em que a marcação dos atores é precisa para que eles venham em direção à câmera para um close. São sequências que poderiam ser mostradas de maneira banal, mas são enriquecidas. Isso acontece no filme todo e é uma marca da carreira de Spielberg, um diretor que sempre pensa “Como posso deixar essa cena mais interessante visualmente?”. E aqui estava especialmente inspirado.
Algumas decisões gerais nesse sentido são mais evidentes. A mais eloquente delas é a de não mostrar completamente os adultos na maior parte do filme. Com exceção da mãe das crianças protagonistas, gente grande só aparece de costas, da cintura para baixo, em silhueta, através de sombras no chão, coberta por aquelas roupas antirradiação. Um outro adulto só mostra plenamente o rosto a 1h20 de filme (e, ainda assim, por trás de um visor; os adultos só vão tirar suas mascaras plenamente com 1h30).
Um pouco disso combina com a ideia da direção de fotografia de Allen Daviau, que é deixar em boa parte do tempo a câmera na altura do olhar das crianças. Considerando, inclusive, que o próprio E.T. é uma criança.
O que faz com que esse olhar de criança não apenas um maneirismo, mas um reflexo do roteiro de Melissa Mathison. O encontro do E.T. com Elliott e seus irmãos é uma identificação imediata entre crianças. Do ponto de vista delas, os adultos, esses seres “sem rosto”, é que são os alienígenas. O pequeno alien foi deixado por acidente na Terra por seus colegas viajantes espaciais botânicos, que precisaram sair apressadamente para evitar os seres humanos que tentam encontrá-los. Elliott e os irmãos o acolhem e tentam ajudá-lo a contactar a família e conseguir voltar para casa.
Mesmo a mãe de Elliott simplesmente não enxerga o E.T., mesmo que ele cruze o caminho dela. E não é por acaso que, na hora em que homens do governo americano entram na casa da família em busca do alien, eles estão vestidos de astronauta, entrando por portas e janelas, como se fossem monstros de um filme de terror.
Essa cena utiliza bem outra das marcas do filme. É a iluminação indireta: quase sempre nas cenas a luz vem de abajures, luminárias baixas, de janelas quase fechadas, de lanternas ou faróis de carros. O quarto de Elliott é um ambiente bem escuro, o que não é esperado da representação de um quarto de criança – e certamente incomum para um filme dirigido a elas.
O roteiro também tem o cuidado de distribuir bem os holofotes entre os três irmãos. Claro que Elliott é o protagonista absoluto do trio, mas o irmão mais velho Michael (Robert MacNaughton) e a caçula Gertie (Drew Barrymore) têm seus momentos solo importantes. A menina ensina E.T. a falar no tempo em que fica sozinha em casa. E Michael sai de bicicleta para encontrar o alien, é seguido por um carro do governo e o dribla subindo um barranco para uma estrada mais alta (com um daqueles planos elaborados do que normalmente seriam: o menino pegando impulso e passando no meio de duas latas de lixo, derrubando-as).
Bicicletas contra carros, espelhando crianças versus adultos, rendem mais tarde a cena mais memorável: a fuga na parte final. A trilha sonora já excelente de John Williams atinge seu máximo na peça musical que se desenrola nos últimos 15 minutos de filme. À moda de Sergio Leone com Ennio Morricone, Spielberg incentivou Williams a compor a peça como um todo e montou a sequência partindo da música – e não o contrário, como é usual.
O resultado é um conjunto de música e imagem que não se esquece. Spielberg coloca a câmera rente ao chão, para a passagem das rodas das bicicletas e depois as dos carros; entre as bikes; os garotos passam por um lado da imagem e pelo outro, os carros também entram por um lado e por outro e tudo vai se orquestrando na montagem até o momento sublime das bicicletas passando em frente ao sol se pondo. Uma imagem que repete o momento anterior em que Elliott e E.T. passam em frente à Lua cheia, de tão grande é esse achado imagético (a cena virou símbolo da Amblin, produtora de Spielberg).
E.T. já havia retornado aos cinemas em 2002, para celebrar 20 anos. Na ocasião, Spielberg tinha seguido a filosofia do amigo George Lucas (com seus Guerra nas estrelas) e retocou digitalmente o filme. Colocou uma cena extra, trocou em vários momentos o E.T. físico por um animado por computador e, a principal mudança, substituiu as armas nas mãos dos agentes do FBI que perseguem as crianças por walkie-talkies. Dizia, na época, que sempre achou de mau gosto policiais armados perseguindo meninos.
Felizmente, ele mudou de ideia. Hoje, após alguns anos de predominância da versão 2002, o filme é distribuído em sua versão original – tanto em home vídeo, streaming, na TV ou neste relançamento no cinema. Ela dá conta perfeitamente do recado e, afinal, um clássico é um reflexo do seu tempo e do cinema de seu tempo – inclusive tecnicamente. E quando chega no seu clímax, E.T. vai além de um clássico: ele vira um daqueles filmes que justificam a existência do próprio cinema.
0 Comentários