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Críticas

Clarice Lispector: A Descoberta do Mundo

Um mundo a ser desvelado… ou não.

Por Humberto Silva | 11.12.2022 (domingo)

Uma sentença célebre da escritora Clarice Lispector é a de que ela é para si própria um mistério. Essa sentença é como de tantos personagens célebres, que acaba repetida como slogan, que diz muito e diz pouco: há que endurecer, sem perder a ternura jamais, certo, Che?

O culto Clarice envolve dose considerável do mistério que envolve seu processo de criação, o teor de sua escrita, suas escolhas e sua vida pessoal. Uma ucraniana de origem judia cuja família emigrou para o Brasil em condições difíceis com a chegada dos bolcheviques ao poder com a revolução de 1917, que se estabeleceu no Recife, onde ela passou a infância, e depois no Rio de Janeiro.

Ao despontar de forma meteórica em nossa cena literária, com pouco mais de vinte anos tem lançado o romance Perto do coração selvagem (1943), um divisor e marco invulgar no que se escrevia na época, escrita e persona se entrelaçam numa obra que coloca Clarice como a maior escritora brasileira. Inegável, pois, que seu culto excite a composição de biografias – Benjamim Moser dedicou anos à escrita do calhamaço Clarice, uma biografia, Companhia das Letras, 576 págs., tradução José Geraldo Couto – e filmes; este o caso de Taciana Oliveira, que dirigiu o documentário Clarice Lispector: a descoberta do mundo.

Trata-se de um trabalho que levou um bom tempo para sua realização, quase duas décadas, com dificuldades para obtenção de verbas e que acaba revelando um tanto de obsessão de Taciana. Ao longo dos anos, para sua consecução, ela colheu depoimentos com recursos próprios, dentre as quais de figuras importantes hoje falecidas, como Ferreira Gullar, Ledo Ivo, Alberto Dines, assim como descobriu uma entrevista de Clarice ao programa Os mágicos, da TV Educativa, de 1976: a entrevista para a TV Educativa acaba sendo o fio condutor do documentário.

Rara entrevista no programa “Os Mágicos” (1976)

Entremeado às entrevistas com personalidades do mundo literário que expressam sentimentos sobre Clarice, a voz over dela e imagens poéticas que reforçam o “mistério” que encobre sua persona. Essa opção narrativa dá ao filme o tom de elegia. Há um fundo nostálgico e triste com imagens de Recife na década de 1920, quando a família de Clarice se estabeleceu por lá, o farto uso de fotografias. Relato da vida privada dela com as irmãs, com os pais. Há, igualmente, relato de sua intensa atividade na crônica jornalística no Rio de Janeiro.

Os escritores Marina Colasanti e Affonso Romano de Sant´Anna se destacam. E, além do casal, os depoimentos do filho de Clarice, Paulo, de sua prima Bertha, e da amiga Maria Bonomi, que eu não conhecia, enriquecem o filme. Colocam o espectador em contato com momentos e idiossincrasias da escritora e da mulher. Aparentemente esquiva, ou pouco à vontade ao se expor a convenções sociais, mas que transitou por décadas, justamente, na imprensa, com uma visibilidade jamais despercebida.

Falas da amiga de Clarice, Maria Bonomi, enriquecem em muito o filme

Quer dizer: o mistério que a encobriria, frase de efeito, diz muito e diz pouco sobre ela. Nele, no mistério, um tanto de um personagem criado por ela, que a protege e, simultaneamente, gera a aura em torno de sua pessoa pública. Sob esse aspecto, penso, não há propriamente mistério: Fernando Pessoa, para pensar aqui outro escritor genial, ou mesmo seu contemporâneo Guimarães Rosa, guardam tanto de mistério quanto Clarice (não há mistério em escritores, artistas, digamos, excêntricos).

O que, de outra forma, merece realce é o quanto sua escrita e sua vida se conjugam. Seus romances e sua vida se situam num plano em que a impressão de que o personagem que criou para si mesma é falso, ou fruto de sua exuberante imaginação. Daí, sim, no nebuloso jogo de papéis que opõe representação e autenticidade o sentido de sua sentença: para ela mesma, ela era um mistério. Sua obra é tão autentica, verdadeira, quanto sua própria vida.

O título do filme me parece pretencioso. A “descoberta do mundo” é muita coisa. Fica bem, talvez, como efeito publicitário. A escrita de Clarice se confina ao “mundo” de Clarice. E mais, no acento ao mistério, o quanto esse mundo se mostra por meio da escrita e o quanto a escrita não o desvela, pois, por óbvio, não haveria mistério. Para fazer as vezes da pretensão, ao contrário do filósofo Wittgenstein, o mistério não é o que não se pode falar, mas o que se sabe mistério pela fala, pela escrita. Por conseguinte, a obra que ela nos lega.

A narrativa adotada por Taciana no documentário, por sua vez, é fragmentada, imprecisa, com cronologia vaga, depoimentos lacunares, soltos, afetivos e por isso repletos de digressões. O espectador que, mesmo tendo bom contato com a obra de Clarice, fica no ar com respeito às circunstâncias de um gave acidente em que ela teve as mãos queimadas, assim como sobre, a partir de depoimento de Ferreira Gullar, qual seria a doença de um de seus filhos.

Ferreira Gullar em depoimento para o filme

Esse um ponto no qual acho interessante ponderar sobre intenções explícitas ou tácitas de Taciana. Se ela quis com o documentário passar certo ar que de algum modo nos remeteria ao “mundo” de Clarice, entendo que ela foi bem sucedida. Há um mundo no qual a escrita, as imagens em Clarice Lispector – a descoberta do mundo, não se descobre.

No Recife, o filme pode ser visto em sessão única nesta quarta-feira (14) dentro da 25º Mostra Retrospectiva/Expectativa no Cinema da Fundação (Derby), às 18h.

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