26ª Tiradentes (2023): Xamã Punk
Xamã Punk talvez seja um dos mais radicais filmes já exibidos no festival
Por Marcelo Ikeda | 26.01.2023 (quinta-feira)
A Mostra de Tiradentes é conhecida por apresentar filmes desafiadores, que buscam romper com as convenções estabelecidas. Ainda assim, Xamã Punk talvez seja um dos mais radicais filmes já exibidos em todos esses anos de Mostra Aurora. Como o filme estilhaça por completo uma possibilidade de construção de sentido, ele soou para quase todos que assistiram ao filme aqui em Tiradentes como uma mera brincadeira pretensiosa e vazia de um grupo de jovens mimados. Acho importante que essa recusa inicial grosseira possa ser problematizada, ao mesmo tempo em que ressoa um desejo de questionar: o que de fato essa desconstrução propõe no atual cenário do cinema brasileiro?
O filme incorpora de maneira extremamente radical elementos como ruídos de imagem e de som, imagens propositalmente embaçadas ou sem foco, movimentos abruptos e incompletos de câmera na mão, intensa fragmentação narrativa decomposta em esquetes que não desenvolvem ou se articulam em teleologia, personagens como corpos performáticos, etc. O esboço de fio narrativo se apresenta com um grupo que sai de uma caverna e parece habitar em um mundo pós-apocalíptico, num forte embate entre natureza e civilização. As ruínas de uma construção e carcaças de equipamentos eletroeletrônicos convivem com a forte presença da natureza como uma pequena floresta.
As ideias de xamanismo e do universo punk surgem como meros pontos de partida que o filme não apresenta muito interesse em aprofundar ou desenvolver. E de fato, “aprofundar e desenvolver” não é aderente ao que o filme se propõe – uma experimentação sensória pelas superfícies do corpo e da imagem. O filme parece muito mais se concentrar num exercício de radical desconstrução mas não sabe muito bem o que fazer com seu material. Um filme primitivo pós-apocalíptico, as ruínas de uma civilização (inclusive a civilização-cinema). Em determinado momento, um dos personagens que produz algo parecido com uma pintura rupestre recusa o rótulo de artista. Um filme disruptivo e distópico. Um corpo desorganizado e um filme como corpo-ruína de si. A exasperação do presente mas sem melancolia. Ao mesmo tempo, esse desespero não consegue transformar os sentidos numa experiência em potência, de modo que o filme tateia possibilidades mas não contagia o espectador com essa energia protoprimitiva. Talvez o filme seja uma mera brincadeira, que dialoga com a ideia de avacalho e crise da produção de sentido num mundo fraturado, como o cinema marginal e o Super-8 brasileiros dos anos 1970. Ou uma mistura estranha entre arte conceitual contemporânea e o filme teen trash. Mas o filme de João Maia Peixoto nem tem o visceralismo irônico de um Petter Baiestorff nem o rigor pulsante de um João Pedro Faro. O filme parece não propor um diálogo com uma tradição de cinefilia ou com um percurso de referências artísticas.
Elementos como imagens e sons extremamente ruidosos, personagens performáticos que transitam em improviso pelo espaço, a relação entre natureza e ruínas, remetem a certos elementos do cinema marginal brasileiro mas com um certo apreço por uma autoironia. Os adereços religiosos utilizados em rituais anarcotrash de criaturas seminuas parecem querer ingressar por uma espécie de subgênero próprio: o xamãploitation. As ruínas de um filme que mal conseguiu ainda se erguer. Diante das ruínas de uma civilização-cinema, esse grupo de amigos parece passear em deriva num percurso interessante pela sua radicalidade, mas sem conseguir extrair grande potência dos seus desejos. De todo modo, esse desespero light e essa radicalidade de superfície parecem surgir como sintomas de uma geração pós-tudo que sabe que precisa romper com as tradições mas que não sabe muito bem como fazer. Nesse sentido, o projeto estético-político de Xamã punk expõe muitas das suas contradições. Se o filme parece querer romper pelo avesso as convenções do bom gosto do cinema e de seu projeto artístico canônico de uma arte capitalista burguesa, ele acaba paradoxalmente ressoando como um giro em falso diante de um mundo em que o anti-establishment também se integra ao circuito das artes como um recurso de efeito. A pergunta que ressoa após o final da projeção é: o que de fato Xamã Punk propõe a partir das ruínas da civilização? O que de fato a experiência do filme faz perdurar no corpo e na consciência do espectador ao fim da projeção?
Ano passado fiz a provocação que Extremo Ocidente, de João Pedro Faro, deveria estar na Mostra Aurora, porque se trata de um realizador que promove uma pesquisa consciente e em formação em relação a outras possibilidades para o cinema brasileiro independente. Nesse sentido, sinto que Xamã Punk talvez fosse melhor compreendido na Mostra do Filme Livre do que na Aurora de Tiradentes.
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