Aftersun: amar as ambivalências da memória
Uma reflexão a partir da psicanalise: Talvez nossas memórias jamais se conciliem numa linearidade.
Por Pedro Pennycook | 20.01.2023 (sexta-feira)
Não é de hoje que costumamos dar à infância lugar privilegiado na análise de nossas vidas. Ainda que memórias cotidianas possam e tenham efeitos concretos no modo como agimos, as experiências infantis parecem resguardar algo da gramática fundamental pela qual aprendemos a desejar e, por conseguinte, falarmos sobre nós. Muito mais vezes do que gostamos de imaginar, no entanto, essa gramática funciona como uma prisão existencial: ela refreia nossa capacidade de elaboração diante do que outrora não tivemos capacidade de expressar em palavras, de imagens desconexas que não se teceram enquanto narrativa.
O longa de estreia de Charlotte Wells, Aftersun (2022), pode ser entendido como uma visita, senão um acerto de contas, com sua própria infância. Ao elaborar por meio da ficção uma viagem de férias com seu pai, a diretora, cuja presença se corporifica na trama através da pequena Sophie, reencontra os gestos de uma vida que começa a ensaiar voz própria. Dentre os primeiros olhares e gestos curiosos, ainda que desencontrados, com um grupo de turistas mais velhos e que os chamam a atenção, às suas tentativas de documentar a viagem com uma câmera de vídeo, Sophie busca sobretudo se conectar com o pai.
O cinema parece ter sido desde muito cedo sua principal forma para tal. Não como se fosse o caso das lentes lhe permitissem recordar aquilo que não fomos capazes de o fazer através de nossos olhos, e sim como a maneira de deixá-los demorar na realidade até que nela reencontrem a capacidade do encanto. Boa parte dos enquadramentos nas cenas parecem confirmar essa necessidade, que à época parecia tão imediata quanto hoje se revolvia numa busca angustiada pelos fragmentos de memória que escapuliram pelos cantos do take.
A câmera captura gestos aparentemente cotidianos – as danças embaraçosas de nossos pais, os primeiros beijos ainda descoordenados, o esboço de um olhar não correspondido, a inadequação e o estranhamento de não saber nadar quando já sonhamos com mergulhos profundos. Ela os captura e parece nos devolvê-los com a dignidade do inusitado, assim como a infância é sempre o tempo onde os gestos banais ainda podem soar tão primeiros e espantosos.
Mas há sempre algo que escapa à suposta onipresença da câmera. Assim como quando pergunta a Calum, seu pai, sobre o que ele teria desejado fazer caso novamente tivesse onze anos, ou por que os adultos aprendem a falar ‘eu te amo’ quando já não mais sabem outra coisa a falar em troca, Sophie se depara com os escombros de uma memória sempre fadada a ser incompleta.
Subjaz um mistério por detrás dos momentos que nos serão decisivos. Quando Freud pensou a relação entre nossa vida inconsciente e sua elaboração simbólica, ainda sob o signo da transição do excesso de afeto à adesão semântica com a qual adquiriríamos agência sobre nossos traumas, ele chamou a esse funcionamento específico de significação de a posteriori. Era questão de lembrar como lá onde mais nos pensávamos donos de nós mesmos, lá onde a história já teria sido escrita em dados irretocáveis e objetivamente anexados, pairava uma inconstância fundamental. A memória está sempre à mercê de sua significação tardia, e as conexões que traçamos para através delas narrarmos nossas histórias, sempre por se atualizar.
Esse parece ser o caso quando somos convidados à sua vida no presente. Mostrada em duas sucessões não-convergentes de cortes, a Sophie de trinta e um anos – mesma idade que tinha seu pai quando da viagem – parece buscá-lo na imensidão escura de seus próprios trechos de recordações. Entre os clarões e trechos que consegue alcançar, são os gestos de seu pai que a permite identificá-lo em meio ao anonimato superpovoado da pista de dança. É à dança que outrora lhe envergonhava em seu pai que Sophie vai ao encontro; e como quem se desespera com o infamiliar que rebole em nossas lembranças, ao mesmo tempo num abraço desesperado e na queda com a qual seu pai novamente lhe escapa, ela se perde no silêncio do desencontro.
Pois talvez seja o caso de que nossas memórias jamais se conciliem numa linearidade. Se Sophie não consegue convergir abraço e queda, é porque ambos expressam lados de seu pai que jamais poderia conhecer por completo. Não há totalidade na memória – e como mais tarde ela parece perceber, nem mesmo nossa infância parece imune a se ver despossuída de qualquer certificação.
Calum, por sua vez, tampouco parece saber lidar com essa incerteza. Embora Wells decida – acertadamente – não nos contar muito de seu passado, sabemos que ele se divorciou da mãe de Sophie e já não mora mais em sua cidade natal, Edimburgo. Apesar dos esforços e da inegável doçura com a qual a trata, o personagem parece incapaz de se sintonizar à sua filha e os impasses próprios a idade. Como se evidencia em que o vemos em prantos, Calum parece chorar sobretudo uma infância duplamente não-vivida. Primeiro, à sua própria, como parece ser o caso a partir das pequenas pistas que o filme nos fornece. Mais decisivamente, à de sua filha, cuja curiosidade pela vida do pai parece sempre esbarrar na dificuldade deste em permiti-la habitar suas fragilidades.
Ainda assim, resta à diretora Wells o silêncio de quem amou sem precisar desvendar o todo. Como o a posteriori de que falava Freud, tal elaboração permite-nos não uma posse da totalidade, mas certa abertura para saltar na construção contínua de uma subjetividade que transborde nossos primeiros gestos de amor. O amor ocorre exatamente nesse deslize, na discordância entre as fatalidades que julgamos impossíveis de remediar e a força de elaboração do que jamais poderemos desvendar por inteiro. Ele resta como o vínculo fundamental que nos enlaça aos que escapam de serem totalmente nossos, mas que jamais deixaremos de procurar em nossas infâncias.
Pedro Pennycook é psicanalista em formação, membro do Núcleo de Estudos em Filosofia Política e Ética (UFPE) e mestrando em filosofia pela Universidade Federal de Pernambuco
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