O Rei Pelé (1962)
O primeiro filme sobre o nosso Rei é irregular, mas surpreendente sobre o que veríamos na Copa de 1962
Por Humberto Silva | 06.01.2023 (sexta-feira)
A morte recente [em 29 de dezembro de 2022] de Pelé nos tem inundado com imagens, informações, comentários, elogios e homenagens diversas pelos quatro cantos do mundo. Ainda que sua presença jamais tenha sido despercebida, seu falecimento acentuou com os mais variados adjetivos seu gênio, o que ele foi e representou para o Brasil, para o futebol em sentido amplo. Não defendo que, por que não o viram em ação, as novas gerações ignorem o que ele foi; ou que, em caso de dúvida com respeito ao gênio Pelé, precisem de imagens hoje à exaustão como prova dos nove. Corrigindo: quem não tinha a dimensão da genialidade de Pelé até as exaustivas imagens que agora se exibem, daqui a duas estações, quando esse fluxo de imagens arrefecer, vai continuar ignorando-o.
O gênio Pelé, só como registro, foi imediatamente percebido por quem o viu surgir. Claro que circunstâncias casuais forçam a mitificação – a data de nascimento gera o feito de ter sido campeão do mundo aos 17 anos, pois, nascesse um ano antes, só disputaria a primeira Copa do mundo com 20 anos. Mas, justamente, é igualmente claro que ele foi para sua primeira Copa do Mundo com a expectativa aqui no Brasil de que seria Pelé. Basta, com paciência, vasculhar a crônica futebolística da época. Nelson Rodrigues não teve dúvida ao afirmar de modo categórico que aos 17 anos, antes mesmo da Copa na Suécia, ele já era o rei do futebol. O título da crônica? A realeza de Pelé. Essa a certeza que a história provou não ser hiperbólica depois de o ver marcar 4 gols numa vitória do Santos sobre o América do RJ.
Antes de qualquer virtude destacável, o que mais me impressiona em Pelé é a precocidade. Impossível imaginar que com tão pouca idade tenha atingido o nível de excelência que o fez ser reconhecido como rei do futebol antes da conquista de uma Copa do Mundo. E são justamente os primeiros anos da carreira de Pelé e seu início fulgurante que impulsionaram o diretor argentino Carlos Hugo Christensen a realizar O Rei Pelé em 1962. Trata-se de um filme hibrido. Um documentário ficcionalizado que acompanha a vida de Pelé desde seu nascimento em Três Corações, MG, até a vitória do Santos no mundial de clubes em 1962 contra o Benfica, de Portugal.
Um primeiro destaque a ser ressaltado sobre o filme. O Rei Pelé foi realizado por um argentino, sendo bem conhecida a rivalidade que existe entre Brasil e Argentina no futebol. Vejamos, Christensen foi um diretor bem atuante no cinema argentino entre as décadas de 1940 e 1950. Mas o ambiente político pouco favorável a ele o levou a se estabelecer no Brasil na segunda metade da década de 1950, onde continuo bem ativo seu trabalho no cinema: Meus amores no Rio (1958) revela seu enorme apreço pela cultura brasileira, com destaque para a música. Não é, portanto, surpreendente que tenha sido estimulado a fazer um filme sobre Pelé.
O que realmente desperta curiosidade é ver que Pelé foi estimulado por diretores nascidos no Brasil – Luiz Carlos Barreto e Eduardo Escorel, Isto é Pelé (1974) – apenas quando estava em fim de carreira. No mesmo ano do filme de Christensen, o cinemanovista Joaquim Pedro de Andrade fez Garrincha, alegria do povo (1962). Sem entrar numa discussão nesse momento estéril, a imagem pública de Pelé não tinha para o Cinema Novo o apelo da de Garrincha. O modo como Pelé se postou diante de questões raciais e mesmo sobre a ditadura militar no Brasil é um ponto sensível. Exógeno ao Cinema Novo, Christensen minimiza o contexto social e injunções raciais. Seu Pelé é alheio aos subterrâneos sociais do futebol, como em grande parte o próprio Pelé forjou sua imagem enquanto foi jogador de futebol.
O Rei Pelé foi concebido a partir de depoimento do próprio Pelé. Episódios de sua infância são, então, cobertos pela imaginação e devidamente ficcionalizados. É assim que é exibido o fascínio de uma colega de escola branca por Pelé, quando ele vivia em Bauru. Tal fascínio foi duramente reprimido pelo pai da menina pelo fato de Pelé ser negro. Difícil extrair o que houve de verdade no fascínio da menina, além do que foi contado por Pelé, e que provavelmente levou Christensen a carregar nas tintas para dar ar de dramaticidade a um amor adolescente proibido. Numa cena bem curiosa, ele já jogador de futebol mundialmente famoso, ela anônima na multidão depois de um jogo lhe pede autógrafo.
Aliás, quando já jogador, o próprio Pelé interpreta a si mesmo. O momento mais notável é a reconstituição de sua chegada à Vila Belmiro, recebido pelos jogadores Zito e Pagão, que também se integram à reconstituição. Tímido no vestiário, ele é apresentado como o jogador que ainda faz pipi na cama. Nas cenas que têm o próprio Pelé atuando, digno de nota é sua relação com o ex-jogador Pitota, interpretado pelo jovem Lima Duarte. Na relação com Pitota, provavelmente uma licença poética. Ídolo na Santa Cruz de Pernambuco na década de 1910, esquecido e tendo a carreira encerrada precocemente por contusão, não há registro de ter conhecido Pelé. Mas Pitota é, no filme, algo como um espectro que apavora Pelé ao fustigá-lo com a existência de um lado oculto no futebol. A fama e o sucesso repentino estão o tempo todo por um triz. Uma contusão num lance casual e tudo se desmorona.
Ora, O Rei Pelé foi filmado no mesmo ano em que Pelé saiu da Copa do Mundo no Chile por contusão no segundo jogo. O Brasil foi campeão do mundo, certo, mas ele, Pelé, experimentou na conquista uma das maiores frustrações de sua carreira. A contusão e as conversas com Pitota geraram o medo, e aí a figura espectral, de que não voltaria a ser o mesmo. O filme termina com o triunfo de Pelé poucos meses depois da Copa de 62 com a conquista no mesmo ano do mundial de clubes pelo Santos. Inegável que, pelo próprio título do filme, Christensen não o terminaria com Pelé contundido e fora da conquista do bicampeonato mundial pela seleção. A conquista do mundial de clubes pelo Santos, meses depois, mostra sua volta gloriosa aos gramados e afasta o trauma que o leva a se imaginar um novo Pitota.
A consagração definitiva de Pelé, não obstante, ocorreria oito anos depois, com a conquista da Copa de 1970. Ou seja, se houve da parte dele, de fato, receio de que não voltaria a ser o mesmo com a contusão em 1962, a dimensão atingida com a conquista de 1970 é de tal ordem que praticamente se esquece que ele não teve efetivamente influência no bicampeonato. Mas, vale notar – e isso o filme de Christensen exibe, sem que eu saiba se partir de depoimento do próprio Pelé ou se por intuição dele próprio –, o quanto a possibilidade de fracasso atemorizava Pelé. No documentário Pelé (2021), dirigido por David Tryhorn e Ben Nicholas, indagado sobre como havia se sentido com a conquista da Copa de 1970, ele respondeu de forma peremptória: alívio. De fato, alçado à glória em 1958, ele só ganhou a condição de titular na seleção no transcorrer da competição; em 1962, por outro lado, a expectativa de confirmação de que ele era o verdadeiro rei do futebol foi frustrada pela contusão; e, enfim, a Copa de 66 fica como o maior fiasco de sua carreira, com o Brasil sendo eliminado na fase de grupos.
Hoje provavelmente 11 em cada dez pessoas não têm a dimensão de que Pelé jogou a Copa de 1970 entre extremos. Na entrevista para o filme Pelé ele expressa com todas as letras o que seria para sua história ganhar ou perder. Daí a resposta enfática: alívio. Ocorre que – e isso creio que de modo acidental, meramente acidental, esteja no filme de Christensen –, depois dos estratosféricos feitos de Pelé entre 1958 e 1962, sua carreira gradativamente declinou. Artilheiro absoluto no campeonato paulista entre 1957 e 1965 – lembrar que era então a principal competição nacional da qual participava –, com marcas que superaram os 40 gols em várias temporadas, entre 1965 e 1974, quando se aposentou pelo Santos, ele perdeu essa condição e foi artilheiro apenas em duas ocasiões: 1969 e 1973.
Quer dizer, O Rei Pelé, no que parece despercebido para um filme realizado em 1962, desperta minha atenção para um ponto. O receio de fracasso que deve apavorar todo grande jogador de futebol, todo atleta de alto rendimento em sentido amplo. Passada a contenda e o resultado final, a vitória, e a história é contada. Não suponho, além do louvor, quais foram as intenções de Christensen. Mas, subliminarmente, O Rei Pelé põe em cena o quanto de pânico e trauma cobre um personagem que, escrita a história, é coberto pela perfeição.
Escrito assim, posso deixa no leitor a impressão de que Christensen fez uma obra prima, que O Rei Pelé, assim como o protagonista, é esplendoroso. Não é bem isso. Para abusar de clichês que recrimino, trata-se de um filme irregular, cujas dramatizações não funcionam, a dublagem desagrada, que é lacunar nas informações e mistura inadequadamente cinebiografia e documentário. Enfim, não valeria a pena ver um filme sobre Pelé com tantos defeitos assim. Mas, reduzir um filme a seus defeitos, conquanto sejam de fato defeitos, apaga o que ele sub-repticiamente pode revelar e que, para mim, tem enorme importância: como são expostas fragilidades em um jogador que para todos é tido e havido como símbolo de perfeição. Entendo que essa não é uma questão de somenos importância. Assim sendo, com ela, um valor a não ser negado no filme de Carlos Hugo Christensen.
Veja o filme completo aqui
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