26º Tiradentes (2023): As Linhas da Minha Mão
Aposta pelo fragmento, pelo incompleto, pela deriva, pelo percurso ao examinar vida e obra de uma artista
Por Marcelo Ikeda | 01.02.2023 (quarta-feira)
– na foto acima, equipe de As Linhas da Minha Mão apresentando o filme no Cine Tenda, semana passada, Foto Jackson Romanelli/Universo Produção
É curioso como, pelos caminhos insondáveis do destino, que eu (infelizmente) só conseguisse assistir a As linhas da minha mão (o filme a abrir a Aurora na segunda-feira) após Solange (o filme que encerrou a Aurora na sexta), e após o resultado da premiação. A comparação entre os dois filmes diante dessa troca de ordem me fez refletir sobre as opções da curadoria desta Mostra de Tiradentes 2023, e, em como, no cinema, na arte e na vida, muitas vezes, a ordem dos fatores altera o produto.
E é possível compará-lo não apenas com Solange mas com um conjunto de outros filmes desta Mostra de Tiradentes em torno de retratos. Filmes que constroem e descontroem representações de retratos. Podemos começar pensando em O cangaceiro da moviola, que propõe um retrato a princípio um tanto convencional de seu personagem, o montador Severino Dadá. No entanto, o filme de Rocha Melo está interessado em seu personagem na medida em que ele permite que o cineasta trace um percurso pela história do cinema brasileiro. Este é um filme em torno de um olhar sobre a História, e, nesse sentido, o filme de Rocha Melo desconstroi uma história canônica centrada em filmes-marco e diretores-autores para se abrir para outras possibilidades de incorporar outros métodos, abordagens, agentes e objetos nesse circuito, e daí reside sua contribuição.
Já comentei o quanto Peixe Abissal abandona as ancoragens biográficas para promover um mergulho na vida-obra de seu protagonista Luís Capucho, entrecruzando vida e obra de maneira orgânica e fluida. Mas, ainda que rompa com a biografia totalizante, ainda assim, é possível identificar linhas claras de conexões entre a vida do autor e os temas mais marcantes de sua obra.
Mas aqui no caso de As linhas da minha mão, a opção de João Dumans é muito mais radical, tanto em termos do olhar para sua personagem quanto pelas relações intrínsecas entre documentário e ficção, ou ainda, se preferirem, entre o que existe previamente à presença da câmera e o que é dispositivo criado pela mise en scène do filme quando a câmera é disparada. O filme também fala de uma artista-criadora, mas a opção pelo fragmento é tão marcante que chegamos a ter certa dificuldade em entender qual o seu trabalho ou quais os eixos de sua criação. Em comparação com os dois anteriores, é nítido como o filme é muito mais radical em examinar a relação entre vida e obra de uma artista, em movimento de contínua potência, por meio de uma aposta incondicional pelo fragmento, pelo incompleto, pela deriva, pelo percurso. Por incorporar a margem e o excêntrico como um elogio à parte em vez do todo. Em vez de um percurso pela História, ou de um passeio fluido entre temas-função, As linhas da minha mão aposta de forma plena nessa incompletude do presente como gesto fundador de uma dramaturgia. São pequenos momentos, estilhaços aparentemente pequenos ou isolados que nos permitem aproximar dessa personagem de si: por exemplo, Viviane não se preocupa em nos apresentar os grandes temas de sua criação mas é como se um momento aparentemente anedótico ou passageiro de sua vida, como um encontro fortuito numa noite em Milão em uma viagem de trem, nos revelasse as potências de sua vida.
Mais Foucaultiano ou Deleziano impossível. Há um momento em que Viviane e seu amigo leem um trecho de Nietzsche em que a artista responde a provocação proposta pelo texto, afirmando que prefere ser uma desertora a um pastor, líder de um rebanho de ovelhas. Nem líder nem seguidora, mas aquela à parte. Essa aposta na micropolítica, no instante precário como fundador, marca um gesto ético de se aproximar de uma personagem aparentemente em posição de vulnerabilidade (uma mulher com transtornos psíquicos) para vislumbrar o que há de potência, ou ainda, integrá-la ao mundo, como parte de uma dramaturgia do comum.
Nesse sentido, As linhas da minha mão dá continuidade a um movimento do chamado “novíssimo cinema brasileiro” em retratar pessoas em situação de vulnerabilidade por um contexto de potência, tornando fluidas as relações entre documentário e ficção, por meio de um cinema do afeto. Dumans não procura tornar sua personagem uma vítima de um sistema social opressor mas tampouco procura caracterizar sua personagem a partir de um perfil psicológico a nível clássico. É possível ver As linhas da minha mão como desdobramento de uma longa linhagem do chamado novíssimo cinema brasileiro que passa por filmes (mineiros) como O céu sobre os ombros, A vizinhança do Tigre ou mesmo Baronesa.
Por isso, achei curioso quando, em um dos debates, o curador-Diretor Artístico de Tiradentes, Francis Vogner dos Reis, expôs, quase em tom de desabafo, uma contrariedade em relação àqueles que dizem que a Mostra Aurora se centra em torno do mesmo tipo de filme, uma vez que filmes como Rosa Tirana ou Cervejas no Escuro comprovam que a Aurora sempre procurou se oxigenar com outros gestos criadores. Se isso com certeza é verdade, ao mesmo tempo é também possível observar uma linhagem característica. Digo isso porque considero que certamente As linhas da minha mão, que recebeu o principal prêmio da Mostra Aurora, não deixa de ser um produto sedimentado pelas próprias tradições de Tiradentes, e não imagino outro lugar do mundo onde esse filme tão delicado pudesse ser melhor compreendido do que sob o Cine-Tenda.
Faço essa observação pensando nos possíveis ecos ou rastros do chamado “novíssimo cinema brasileiro” no cinema brasileiro da década de 2020, agora sob os ataques do cinema identitário. Talvez sua delicadeza e sua aposta nas micropolíticas do afeto ainda tenham ressonância no cinema brasileiro de hoje, num momento em que as estratégias de choque talvez possam se diluir no ambiente de reconstrução pós-Bolsonaro.
Pois é curioso pensarmos em As linhas da minha mão logo após ter visto Solange. Vendo esses dois filmes tão centrados em suas protagonistas (fechados em close em seus universos), Solange parece até um tanto determinista, uma vez que, desde o início, Solange parece estar condenada a andar em círculos procurando reunir os rastros de um passado que já não é mais o seu. Falamos anteriormente que a grande questão trazida por Solange é sua solidão e sua falta de liberdade. A vocação documental do filme de Dumans parece abrir uma enorme janela que acalanta sua personagem, que permite ouvi-la e que reconfigura seu próprio universo. A personagem não é exposta ao martírio do mundo pela indiferença dos que a rodeiam, mas o “dispositivo” fornece adubo para que o universo da protagonista possa desabrochar em sua potência, em suas dores e delícias. Essa é a beleza das estratégias de abordagem do chamado “novíssimo cinema brasileiro”, esse desejo improvável em apostar que ainda assim, mesmo diante de tudo, é possível existir de forma plena, aceitar a si mesmo, esse caminho de autodescoberta com todas as suas precariedades, inclusive em relação ao próprio filme. Ou seja, não fazer filmes perfeitos mas incorporar suas imperfeições como gesto ético de aceitar o mundo como carne.
Ao mesmo tempo, As linhas da minha mão não é nada ingênuo como mise en scène, porque Dumans é um observador atento e já incorporou as principais lições dessa pequena tradição de fluidez entre ficção e documentário no cinema brasileiro. Vejamos o início do filme, em que a câmera de Dumans procura um lugar possível para dançar junto com o corpo da protagonista, e não consegue enquadrar esse corpo que sempre lhe escapa. Mas, à medida que o filme caminha, essa câmera, o olhar de Dumans, parece encontrar o seu lugar. Essa relação de distância e proximidade nos aponta para a consciência do seu próprio processo de construção, ou ainda, para uma intimidade fabricada. Ora, parece claro que não se trata de uma câmera simplesmente a filmar uma conversa entre dois amigos (como Lembro mais dos corvos, o belo filme de Gustavo Vinagre com Julia Katharine) ou mesmo uma entrevista de um documentarista com um retratado (desde os filmes de Coutinho até outros de talking heads). Aqui, Dumans encontra um dispositivo adequado para que sua presença seja discreta – um pouco aos moldes de O céu sobre os ombros, ou A vizinhaça do Tigre e Baronesa. O realizador e a personagem engendram um “dispositivo” em que seja possível que a personagem encene seu próprio universo, ou seja, que dispare potência para as representações de si. Um sinal das sutilezas das estratégias de Dumans é como, em algumas vezes, o filme aposta em longos planos de Viviane e, como em outras, ele corta para um campo-contracampo (o amigo que lê trechos de livros ou o outro amigo que ela vai visitar e que no fundo serve mais como disparador para que Viviane possa falar, tanto que, em certo momento, ela pede para que ele não a interrompa). Parece que Viviane está ali simplesmente a falar, mas é claro que existe um profundo cuidado da mise en scène em engendrar um dispositivo discreto para que o universo da Viviane possa aflorar em potência diante de uma câmera. Ou seja, é preciso pensar As linhas da minha mão não apenas pelo que Viviane diz mas também pelas estratégias que tornam possível que ela consiga se expor dessa forma, ou seja, não apenas por sua temática mas por sua mise en scène.
O que acho curioso é que nesse dispositivo extremamente contemporâneo de Dumans persiste algo de clássico, que é a ideia de um esmerado trabalho para produzir o efeito de invisibilidade da presença da mediação do realizador. No cinema clássico, a gramática da transparência e da identificação produz esses efeitos. No caso desse cinema contemporâneo, o dispositivo de vocação documental produz um efeito de cinema direto, de “verdade” ou aderência plena ao real, quando na verdade se trata de uma construção mediada, ou seja, um dispositivo que empodera porque evidencia sutilmente uma plena consciência de sua personagem do quanto e como ela pretende se expor. O que há de clássico é esse desejo do autor-diretor-mediador em apagar os rastros de sua presença na elaboração da mise en scène.
Dito isto, me interesso pelo filme justamente nos momentos em que o instante do fragmento aponta, de forma radical, para a incompletude do momento, abandonando de forma plena qualquer ideia de biografia ou de ancoragem psicossocial. Quando a montagem procura blocar o filme com outras intenções aparentemente mais nobres, meu interesse se reduz. Creio que a montagem algumas vezes reduz a potência dessa aposta radical no fragmento. Enfim, como a vida, As linhas da minha mão é repleto de pequenas faíscas, de momentos de beleza de epifania em situações aparentemente simples. Quando esses instantes irrompem, somos tomados por surpreendente beleza – esse é todo o encanto de certa vertente das “micropolíticas do afeto” do “novíssimo cinema brasleiro”, que pareciam estar adormecidas, mas que comprovam que ainda podem render bons frutos.
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