A Baleia
Das dificuldades da concisão.
Por Yuri Lins | 23.02.2023 (quinta-feira)
Entre os realizadores americanos surgidos nos anos 90, Darren Aronofsky foi aquele que mais adotou uma estética “MTVesca”, em que a essência de suas narrativas caminhava em consonância com uma montagem próxima ao videoclipe. Em filmes como Pi (1998) ou Réquiem Para Um Sonho (2000), o acúmulo de planos em poucos instantes era coerente para retratar a existência paranoica e misantropa de um matemático ou as existências que se destruíram sob os efeitos das drogas. A sua obra, de um ponto de vista formal, apresenta um substrato paroxístico dos experimentos com a montagem cinematográfica de Griffith, Pudovkin e Eisenstein. No entanto, como consequência, a construção dos personagens sofre um completo asfixiamento das nuances, fazendo com que eles se imponham apenas através do exagero rumo à aniquilação total.
Ainda que se esteja falando de uma obra profundamente irregular, pode-se dizer que o melhor que Aronofsky fez passa por um deslocamento do formalismo hiperativo para se concentrar na arte do ator. Em filmes como Cisne Negro (2010) e, principalmente, O Lutador (2008), apesar de todos os cacoetes de estilo, as performances de seus protagonistas, Natalie Portman e Mickey Rourke, se sobressaíam e eram capazes de criar momentos de calmaria em meio à tempestade – não uma calmaria paralisante, mas sim aquela em que a presença humana se concretiza na tela e não apenas serve como receptáculo das obsessões de seu realizador.
Eis que chega aos cinemas seu mais recente filme, A Baleia (EUA, 2022), que adapta a peça de teatro escrita por Samuel D. Hunter. A narrativa explora o relacionamento fragilizado entre o professor de inglês Charlie (Brendan Fraser) e sua filha adolescente Ellie (Sadie Sink) . Charlie é um homem recluso, que sofre com obesidade mórbida e transtorno de compulsão alimentar, e é cuidado por sua amiga enfermeira, Liz (Hong Chau). Ele lida diariamente com a culpa de ter abandonado Ellie e sua mãe, Mary (Samantha Morton), quando se apaixonou por um de seus ex-alunos, que agora está morto. Na última semana de sua vida, Charlie tenta reconectar com Ellie, mesmo que a jovem seja reativa e tenha profundas camadas de ressentimento.
A Baleia pertence a este grupo de filmes onde o ator é o centro de interesse para o realizador. Aronofsky mantém a natureza teatral do texto, restringindo o filme ao espaço do apartamento de Charlie, como um palco. Ele cria uma espécie de “lei da gravidade” cinematográfica, em que o protagonista funciona como um corpo massivo, exercendo uma enorme atração em todos os outros personagens e elementos do filme. A câmera é atraída por essa força gravitacional, assim como os corpos celestes são condicionados pela gravidade dos planetas: as panorâmicas curtas e outros movimentos de câmera sempre têm Charlie como eixo, de forma que a movimentação dos outros personagens está sempre condicionada a ele. Mesmo quando há um corte para um plano médio ou um close nesses outros atores, a câmera continua seguindo a linha de visão que possui Charlie como ponto nevrálgico.
Brendan Fraser, após alguns anos longe das telas, retorna em um papel que lhe permite demonstrar todas as suas aptidões como ator. Imerso em maquiagem e nas próteses corporais; seu protagonista tem a mobilidade reduzida própria a quem está acometido pela obesidade mórbida, o que limita a sua capacidade de expressão corporal e faz com que a atuação se concentre nas emoções que ele é capaz de transmitir através de gestos comedidos e, principalmente, de seus olhos. São seus olhares que se sobressaem em meio à inundação corporal de seu personagem e ao texto de verve teatral. A opção pelo formato “4:3″para enquadrar as cenas, apesar de ser uma coqueluche nos filmes indies atuais, é acertada nesse caso, já que esse formato é ideal para capturar a figura humana e conferir-lhe uma certa grandiosidade.
Embora Aronofsky tenha mérito em desafiar-se a trabalhar com espaço limitado, poucos atores e sem recorrer aos cacoetes da montagem de videoclipe, a concisão do filme expõe sua maior fraqueza. Ele não consegue sustentar essas limitações como potência, o que é evidenciado pela trilha sonora densa e grave, assinada por Rob Simonsen, que preenche de forma impositiva os espaços de silêncio e tensão das cenas. Aronofsky parece querer agregar uma intensidade exterior ao filme, asfixiando os seus silêncios. Embora o formalismo hiperativo possa ter sido adequado para alguns de seus filmes, aqui, na ausência dele, ele parece não saber como lidar com a sobriedade. Diante do desafio de enfrentar a falta de estímulos visuais, ele soa como alguém que precisa se abstrair e deformar o seu mundo, permeá-lo de som e de fúria para não confrontar o presente.
Esta é a diferença abissal entre Aronofsky e mestres da concisão como Carl Th. Dreyer ou Manoel de Oliveira: nos filmes desses realizadores, principalmente os que têm base teatral, a palavra se materializa no espaço e se torna tão tangível quanto qualquer movimento ou impressão capturados pela câmera. A palavra, quando vocalizada, torna o silêncio subsequente palpável. Enquanto a palavra pode dissimular algumas ambiguidades, o silêncio as propaga pelo espaço. A concisão essencializa a dimensão física e permite que os personagens e espectadores habitem de forma radical o tempo presente, sentindo a gravidade que resulta da convergência do espaço, tempo, corpo, palavra e sentimentos. Nesse processo, esses elementos se friccionam, se amalgamam, colidem e até mesmo se sublimam.
A supressão do silêncio é o que torna A Baleia um mau filme, transformando todas as suas escolhas de encenação, ainda que contidos, em um aglomerado de estilismos e não em uma carpintaria rigorosa a partir de um texto cuja natureza é a concisão e a economia de seus meios. Contudo, há os olhos de Charlie; existem os gestos da enfermeira Liz, carregados de luto, mas que se transformam em cuidado para com seu amigo; as faladas interditas de Mary, a esposa abandonada, que contêm anos de uma vida compartilhada onde o bem querer ainda batalha contra o ressentimento; a cólera de Ellie, que se afundou em amargura pelo pai, esquecendo de si mesma e criando uma fortaleza tão profunda quanto aquela que o corpo de Charlie se tornou. Este corpo condicionado pelo trauma de um amor ceifado, resultando em um suicídio lento causado pela incapacidade de seguir em frente.
Anteriormente, mencionei como o personagem de Charlie atrai outros personagens para sua órbita, assim como um planeta que exerce gravidade em outros corpos. Essa metáfora é apropriada para refletir sobre o que fica conosco depois de assistir A Baleia. Fraser o constrói como uma estrela em vias de extinção, um corpo celeste implosivo que brilha com mais intensidade ao se aproximar do desaparecimento. É apenas com a redação que Ellie escreveu na sua infância antes do trauma, que Charlie consegue trazer à tona a luminosidade que a garota havia soterrado em si. Aronofsky mantém seu estilo exagerado no clímax, criando uma cena simbólica de transcendência literal. No entanto, é a crença radical de Fraser no texto escrito por Ellie – uma crença na palavra que permeia com tanta intensidade cada gesto, cada passo e cada olhar de Charlie – que é capaz de superar a cafonice da cena final.
Assim como em Cisne Negro (2010) e O Lutador (2008), nos raros momentos de beleza genuína em Fonte da Vida (2006), são os atores que oferecem algo especial. Mesmo que as obras não consigam lidar plenamente com a riqueza das performances, a absorvência proporcionada pelo aparato cinematográfico é capaz de reter esses momentos e torná-los dignos de nossa atenção. É isso que o cinema ainda pode representar: mesmo que já não haja uma quantidade significativa de grandes filmes como outrora, a presença de grandes atores é capaz de fazer valer a pena assistir a filmes insuficientes.
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