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Críticas

As Histórias de Meu Pai

A história através de olhos infantis

Por Humberto Silva | 04.02.2023 (sábado)

O ano em que meus pais saíram de férias (2006), de Cao Hamburguer, é um dos filmes mais cultuados do cinema brasileiro pós-Retomada. Está na lista dos 100 melhores filmes brasileiros em votação da Abraccine. Nele, os anos de chumbo da ditadura militar brasileira são vistos pelo olhar de uma criança. A ditadura, por óbvio, fez feridas ainda não cicatrizadas… A Guerra da Argélia (1954-1962) é igualmente um tema incômodo para os franceses. Rendeu um dos clássicos do cinema político: A batalha de Argel (1966), de Gillo Pontecorvo.

Passados mais de sessenta anos, a guerra acossa os franceses e, da mesma forma que o filme de Hamburguer, o assunto volta. Tendo por referência o livro Profession du père (não traduzido para o português), de Sorj Chalandon, Jean-Pierre Amèris visita o conturbado período da história da França que culminou com a libertação da Argélia, nos anos imediatamente após o fim da 4ª República, e que dividiu a opinião pública francesa. Realiza, então, As histórias de meu pai.

Still de “As Histórias de meu Pai”

Foco do filme. O ambiente familiar no qual vivem pai, mãe e filho pré-adolescente. O pai não tem profissão definida (ironia, justamente, com o título do livro e do filme na França). A mãe é dona de casa. O filho, que revela dotes artísticos, frequenta o que seria nosso ensino fundamental. Entre os três há uma relação que, na falta de um adjetivo talvez mais apropriado, eu chamaria de heterodoxa (um psicólogo poderia chamar de “família disfuncional”, pero…).

Já nas primeiras sequências nota-se no pai problemas que, também com o cuidado de não gerar estigma sem base científica, podem ser entendidos como psiquiátricos. É tomado por impulsos violentos e descontrole emocional frente a situações que exigiriam, no mínimo, uma postura amadurecida. A mãe, por sua vez, por trás de aparente controle emocional, terna e carinhosa, se revela submissa diante das tensões criadas pelo pai.

Still de “As Histórias de meu Pai”

Certo, mas o pano de fundo do filme é a Guerra da Argélia. A interferência dela no ambiente familiar, mais precisamente na relação entre pai e filho. Com um trauma causado pela participação na Segunda Guerra, o pai desenvolve uma xenofobia que abala sua vida cotidiana, ao mesmo tempo em que procura passar ao filho a impressão de ser um herói. A criança, por seu turno, acredita nas histórias contadas pelo pai. Essas histórias a levam a crer que o Presidente Charles de Gaulle estaria traindo a França na guerra da Argélia (lembrar que De Gaulle, de perfil ideológico à direita, foi tomado como herói na libertação da França frente ao nazismo na Segunda Guerra).

As histórias de meu pai é envolto pelo ar de fantasia da criança. O que a leva a se imaginar como membro da OAS (organização terrorista de extrema direita contra a independência da Argélia) e a tentar pôr em prática um plano de assassinato do Presidente De Gaulle elaborado pelo pai. Amèris conduz a narrativa de modo a se ter um filme no qual se mesclam humor sardônico e imaginação da criança. Está claro o tempo todo que as histórias contadas pelo pai são mentirosas, mas, igualmente, que elas são inquestionadas na imaginação do filho. Em sua imaginação, ele é um soldado pronto para defender a França na Argélia. Portanto, é necessário assassinar Charles de Gaulle, o traidor da França.

Still de “As Histórias de meu Pai”

Amèris fez um filme que, creio, prende a atenção do espectador com boa dose de recurso ao suspense. E traz na mesma medida uma questão desconfortável: como, no ambiente doméstico, uma família pouco ortodoxa, lidou com uma guerra que, em princípio, não a afetava diretamente? Ou seja, como as paixões, em uma situação comezinha, impulsionam comportamentos extremos? A se pensar, acredito, que momentos conturbados na história de um país fortalecem sentimentos extremos na esfera familiar. A xenofobia do pai contaminou a imaginação do filho.

Trata-se, vejamos assim, de um filme com recorte sobre um momento na história da França sessenta anos atrás e que carrega pontos de contato com o Brasil dos anos recentes… Amèris, contudo, dá um desfecho que, me parece, ao pular vinte e cinco anos na narrativa, embaralha com uma elipse inoportuna os papéis de pai, mãe e filho na trama. A história da França e a Guerra da Argélia parecem um assunto a ser tocado como que pisando em ovos. Conjecturo que, para os franceses, As histórias de meu pai diga mais do que aqui no Brasil possamos perceber a força da extrema direita e da Frente Nacional.

 

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