A Baleia (texto #2)
A generosidade é perturbadora.
Por Luiz Joaquim | 03.03.2023 (sexta-feira)
Não há nada mais perturbador do que a generosidade. Isso porque ela é antiquada, ingênua, inofensiva e frágil. Tais características somadas resultam no oposto daquilo que o padrão social estabeleceu para o seu cidadão vencedor: que ele seja moderno, esperto, competitivo e forte.
Em A baleia (The Whale, EUA, 2022), de Darren Aronofsky, conhecemos Charlie (Brendan Fraser), um professor que dá aulas online de literatura e é extremamente generoso, logo, bastante perturbador em sua inadequação ao mundo.
Charlie também carrega o peso de quase dez anos de sentimentos de culpa com relação à sua filha Ellie (Sadie Sink, de Stranger things) e ao grande amor de sua vida, o falecido companheiro Allan.
Esses sentimentos, em A baleia, Charlie os arrasta espalhados em seu próprio corpo de 1,91 metros de altura. A culpa é visível e mensurável em seus 270 quilos de gordura, condição que o torna um pária auto isolado em seu pequeno apartamento e o faz pedir desculpas repetidamente a quem lhe ajuda, mesmo que não haja nenhuma razão para pedir desculpas.
Com roteiro adaptado por Samuel D. Hunter a partir de sua própria peça teatral lançada há mais de dez anos, temos um enredo que dá partida com a única amiga de Charlie, a enfermeira Liz (Hong Chau, concorrendo ao Oscar como coadjuvante, assim como Fraser, como protagonista), aferindo sua pressão arterial – e revelando os números de 23 x 13 – após um princípio de infarto.
Liz é taxativa na ordem para Charlie procurar um hospital. Ordem que ele solenemente ignora. O prognóstico aqui é o de um iminente infarto fatal em poucos dias. Charlie compreende isso e nada faz para evitar.
Está dada a condição do protagonista de A baleia e resta ao espectador sofrer junto a esta figura tão frágil em seu gigantismo físico e bondade, arrastando-se em direção ao fim, como a Moby Dick de Hermann Melville, atraída pela obsessão de seu algoz Ahab em matá-la, no célebre romance norte-americano.
Aronofsky sabe que empatia é uma ferramenta valiosa na cartilha dessa brincadeira mentirosa chamada Cinema, e que sua dosagem errada pode pôr tudo a perder. Dessa forma, pode-se dizer que a construção de Charlie aqui não poderia ser mais eficaz em sua capacidade de aproximar o espectador dessa vítima de si próprio.
Dotado de uma sensibilidade e positividade comoventes quando o assunto é a esperança no ser-humano, seja ele quem for (repetimos, seja ele quem for), Charlie busca uma última redenção na vida: reconectar-se com a filha Ellie, de 17 anos, tendo estado distante dela por quase uma década logo após separar da esposa Mary (Samantha Morton), mãe de Ellie, para viver com Allan.
A baleia não impõe apenas ao corpo de Charlie a representação concreta de seu sofrimento e frustrações. Corpo, vale pontuar, visualmente impactante na caracterização de Fraser, que engordou, somada à maquiagem que amplificou sua obesidade.
Com tanto gordura cercando Fraser, são seus olhos os elementos mais eloquentes a nos falar sobre o que vai por dentro da cabeça de seu Charlie. E, não à toa, o ator tem sido celebrado pela sua performance, a qual, trombeteou a imprensa, recebeu dez minutos de aplausos na première do filme no Festival de Veneza, em setembro último.
A direção de arte e a fotografia também atuam aqui com destacada competência em resolver a restrita caverna desse homem-só como um pequeno apartamento soturno, escuro, sob uma incessante e violenta chuva caindo sobre a Idaho dos EUA.
A luz só brilha no final do filme, como um símbolo de libertação desse personagem peculiar. Uma figura que viveu a vida na penumbra da sua sexualidade e, após a emancipação e breve experimentação de leveza e felicidade, acabou por mergulhar numa treva ainda mais profunda a partir da morte de seu companheiro, para não mais sair dali.
Interessante lembrar de Deuses e monstros (1998) de Bill Condon, e perceber a troca de posição de Fraser nesses dois filmes. Na obra lançada 25 anos atrás, ele representava o belo, a juventude e todo o potencial inerente a ela, em contraposição à decadência do artista e idoso intelectual enclausurado vivido por Ian McKellen (que concorreu ao Oscar pelo papel).
Em 2022/23, Fraser é n’A baleia o que foi McKellen em Deuses e monstros, sendo eles, cada um a seu modo, condenados pela sua identificação sexual, e, vejam só, encontram igualmente, ambos, na arte o único afago de suas vidas.
No caso do James Whale de McKellen, seu oxigênio está no belo (surja onde surgir); no caso do Charlie de Fraser, na literatura.
A religião é colocada em jogo no filme atual pela voz de um jovem missionário Thomas (Ty Simpkyns), que tenta ‘salvar’ Charlie numa conversão à Cristo, mas aqui ela, a religião, parece mais funcionar como um elemento opositor para aquilo que o filme realmente vê como transformador, ou ao menos como bálsamo para a aspereza da vida: a arte.
“Você já teve a sensação de que as pessoas são incapazes de não se importarem com as outras?”, pergunta Charlie, num momento decisivo d’A baleia, para a estupefação da personagem que ouve, ao seu lado, tal comentário. E para o deslumbramento também daqueles fora da tela, que, naquela altura, já entendeu a dimensão dos abusos que o indefeso Charlie vivenciou e, ainda assim, ousa acreditar no humano.
A generosidade é perturbadora.
Leia também a crítica de Yuri Lins para A baleia
Amei seu texto , quando assisti o filme eu senti exatamente isso.
Ecilda, muito obrigado pelo feedback. É mesmo um filme tocante. Continue acompanhando nosso trabalho e vá ao cinema 🙂