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Críticas

A Garota Radiante

Doçura e comunhão em meio aos horrores da ocupação nazista.

Por Yuri Lins | 31.03.2023 (sexta-feira)

Criar histórias em que a resistência ao nazismo se dê através da permanência dos gestos de doçura e comunhão é uma das ideias mais corajosas. Chaplin demonstrou isso em O grande ditador e Borzage em Tempestades d’alma, obras que foram lançadas em 1940 e que são profundos manifestos humanistas. A realizadora Sandrine Kiberlain também segue essa mesma coragem com o lançamento de seu novo filme, A garota radiante (Fra, 2023). Enquanto nos clássicos citados a primazia da delicadeza resistia durante o calor da guerra, no filme de Kiberlain ela é retratada através de um olhar retrospectivo sobre o momento em que a Paris foi ocupada pelas forças de Berlim.

Durante pouco mais de uma hora e meia, o filme A garota radiante transporta o espectador para o cotidiano de Irene (Rebeca Marder), uma jovem de 19 anos e de família judia, com uma abordagem quase documental. Pacientemente, expõe os sonhos da garota, seus amores e aspirações em meio a um contexto histórico de uma opressão progressiva. Embora a perseguição aos judeus esteja acontecendo ao seu redor, Irene parece estar em uma bolha de juventude, vivendo a sua vida sem se dar conta do crescimento do perigo.

Irene quer ser atriz de teatro.

Olhares enviesado nas ruas, mercados e cafés; um amigo que deixa de frequentar as aulas de teatro; a ordem para que os documentos de identidade sejam carimbados com a marca “Judeu”; escolas que deixam de aceitar o povo perseguido. Kiberlain registra sutilmente as pequenas, mas significativas mudanças no comportamento e nas rotinas de Irene e sua família. O filme estabelece uma clara disjunção entre a sua vontade de viver e a aproximação do horror. Apesar dos elementos da opressão se infiltrarem em seu cotidiano, Irene continua a expressar seus desejos de vida e alegria. Ela é como um ímã com um campo magnético negativo, cuja força parece repelir e retardar a consolidação da certeza trágica de seu presente.  

O regime de encenação do filme é dedicado a capturar cada gesto, gracejo ou pulsão que emana de Irene. Há qualquer sentimento de fascinação em ver o  seu corpo liberto e flutuante, onde o banal, o idílico e o pueril se entrelaçam para formar um retrato vívido de sua jovialidade. A câmera, no amplo formato Cinemascope, parece se esforçar a todo momento para acompanhar seus movimentos que, por vezes, parecem seguir a lógica inapreensível do vento em vez daquela que rege a densidade dos corpos.  

Doçura e comunhão como resistência.

Pode-se acusar a moça de ingênua ou alienada, mas o que o filme mostra é como a ideologia nazista se infiltra no cotidiano por meio de uma aparência de normalidade. Irene pode ser o foco de paixão do filme, o elo cuja resplandecência submerge a face concreta do horror, mas a morte trabalha no fora do campo e nas bordas da narrativa. São nesses lugares secundários onde os coadjuvantes percebem o estado das coisas e agem da melhor forma para sobreviverem. André (André Marcon), pai de Irene, é um burocrata que aceita as novas imposições como forma de se proteger contra os riscos. Marceline  (Viviane Windhoff), a mãe, resiste ao apagamento de sua identidade judaica através de pequenos gestos de rebeldia, como esconder seu documento de identidade costurado dentro de uma roupa. Enquanto isso, também há a indignação de Igor (Anthony Bajon), o irmão, que está sempre à beira de explodir diante das injustiças impostas.

Todo esse drama periférico é exposto ora através de olhares de soslaio de Irene, ora nos rápidos momentos em que o filme se permite sair de sua órbita. O que falta a Kiberlain é um maior traquejo no equilíbrio desses dois mundos e no trabalho sobre a disjunção entre eles. Embora Irene não seja completamente ingênua, sua graciosidade acumulada pelo roteiro pode ser interpretada como tal.   No entanto, pouco a pouco, a atenção do espectador é atraída para o que acontece com os coadjuvantes, que estão situados nas bordas da narrativa. É nesse ponto que o filme se torna mais interessante, com seus lampejos de uma asfixia incontornável. Conhecendo a história da ocupação nazista em Paris, ao espectador não é permitido ter uma postura de alacridade tal qual a protagonista.

Os coadjuvantes se destacam em “A Garota Radiante”.

No entanto, parece que todo o empenho do filme é direcionado para reter e preservar a presença e a sensibilidade de Irene de qualquer maneira, encerrando-a na matéria cinematográfica. O cinematógrafo agindo como a sua última testemunha. A cena final é a que melhor exemplifica essa intenção: Irene comemora com seus amigos em um bar após o teatro, distinguida com um casaco marcado com a estrela de Davi, dançando livremente e contagiando seus amigos. Uma garçonete lhe olha com temor. Irene senta-se com sua amiga Viviane (India Hair), sem perceber os movimentos da garçonete às suas costas, mas que são percebidos por Viviane. A garçonete retorna trazendo um agente da Gestapo. Os curtos instantes de sua aproximação são encenados como os últimos momentos em que Irene permanecerá com o seu sorriso. Viviane assiste a aproximação com temor, mas diante de Irene disfarça a normalidade movida pelo desejo irreconciliável de preservar sua amiga até o limite do ponderável. A cena termina antes da tomada de conhecimento de Irene; seu  sorriso sendo emoldurado pela escuridão da veste do carrasco.

O olhar paciente com o qual Kiberlain filma a profusão de vida de sua protagonista, ainda que recaia em certo cansaço, encontra na sua imagem final a justeza e a síntese de seu discurso. Irene é transformada em um símbolo de todas as possibilidades destruídas pelo avanço do fascismo. Ao final da sessão, esse símbolo permanece na mente do espectador como um lembrete constante da necessidade de resistir à desumanização, mesmo que isso signifique cultivar a doçura em meio ao horror que ameaça engoli-los e que muitas vezes faz com que os bons sentimentos estigmatizados como fraqueza.

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