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Críticas

Muribeca

Memória e resistência em um bairro em processo de desaparecimento.

Por Yuri Lins | 02.03.2023 (quinta-feira)

O cinema, como arte realista por excelência, tem por vocação, ao menos desde Griffith, estar ao lado das pessoas desfavorecidas. Seu propósito sempre foi retratar os dramas de indivíduos e comunidades que são atravessados pelo motor da história, conferindo-lhes uma presença na imagem que perdura como uma contra-história, onde a pequena narrativa se torna épica quando transposta para o meio cinematográfico. Apesar do que os cafetões de Hollywood ou Cannes possam dissimular, é para isso que o cinema foi feito e é só através do cumprimento desta sua vocação que ele continuará a existir em um mundo cada vez mais desigual.

Muribeca (BRA, 2020) é um filme que cumpre este predestinamento da arte cinematográfica.  Dirigido por Alcione Ferreira e Camilo Soares, o filme conta a história dos moradores do Conjunto Habitacional Muribeca, localizado em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Essa comunidade se vê ameaçada pela possibilidade de ter que deixar suas casas para trás. Problemas estruturais e conflitos imobiliários, combinados com uma luta prolongada entre os moradores e as autoridades responsáveis pela construção, colocam em risco a existência do bairro. Diante dessa situação, os moradores resistem, agarrando-se às suas paisagens afetivas e lembranças, alternando entre a nostalgia e a luta para que o bairro continue a existir.

Em sua estrutura atuam três forças: a primeira vem do presente absoluto, dos planos observacionais do cotidiano do bairro, onde é possível ver o dia a dia que se vive em meio às ruínas dos antigos edifícios. A segunda vem da dimensão da memória oral, onde os moradores oscilam entre falas mais nostálgicas e falas mais combativas. A terceira é o plano do passado corporificado nas imagens de arquivo feitas por um próprio morador, Ozeias, que documentaram todo o transbordamento de vida que o bairro possuía antes dos processos de sua destruição. 

O que torna o filme cumpridor da vocação do cinema é a sua capacidade de construir um pequeno inventário de memórias e presenças que testemunham o bairro antes de seu desaparecimento. No entanto, o filme não cai na ingenuidade de um certo cinema militante que acredita que a denúncia pura e simples é suficiente para criar um filme. Os realizadores, com paciência, recolhem memórias e retratos dos moradores da Muribeca, criando um mosaico que é, antes de mais nada, uma representação da luta coletiva. Essa luta se expõe não só na prática militante, mas também na perseverança do simples existir, na memória que se compartilha, nas performances lúdicas e intempestivas, nas falas aguerridas e nos silêncios implosivos. A câmera, ao criar este espaço de partilha, só pode senão deixar-se absorver destes pequenos gestos para transfigurá-los num arquivo vivo que luta contra a morte. 

O documentário retrata uma história que se repete na luta de classes, em que os centros das cidades são dominados pelo capital, enquanto os pobres são relegados a viver nas periferias ou em habitações de qualidade inferior. Apesar das desigualdades, as pessoas dessas comunidades criam laços de camaradagem, compartilham suas vidas e constroem memórias e formas de resistir às adversidades. No entanto, sob a máscara do “progresso”, o capitalismo interrompe essas comunidades quando percebe que a área que elas ocupam pode ser lucrativa para seus interesses. Isso resulta na fragmentação das vidas e dos laços construídos ao longo do tempo entre as paredes das casas, nos bares, igrejas, praças e ruas que as pessoas caminharam e conviveram por gerações. As pessoas são forçadas a deixar suas casas e se dispersar por outros lugares.

Há uma fala de um morador que é memorável:  ele nos fala dos sonhos que tem tido. No sonho, a Muribeca existe como era antes de sofrer a cisão imposta pelos processos que a afetaram. Nessa dimensão onírica, o morador reencontra seus antigos companheiros e revive lembranças felizes. Além disso, pessoas que ele conheceu em outros lugares e épocas aparecem, habitando o mesmo bairro. A Muribeca se torna um lugar mítico onde convergem aquilo que ele mais gostaria de preservar. Ainda que o bairro esteja em ruínas, sua presença permanece eterna e habitável mesmo que em sonho.  De forma semelhante, o documentário Muribeca utiliza seus pequenos meios de produção para fazer convergir, na metragem do filme e na justaposição de suas cenas, as pessoas que o capitalismo tenta dividir. Cada plano do filme é um ponto de encontro por onde ressoam reminiscências, fabulações, angústias, vacilações, ímpetos de revolta e desejos de reparação. A lei da atração cinematográfica junta o que está constantemente sendo dispersado e cria um museu emocional do bairro e seus habitantes.

Quando se fala em cinema realizado “no chão nu” (expressão cunhada por Brecht), é comum a acusação de fetichismo pela pobreza.  Tudo depende da forma como os realizadores organizam seus materiais e encontram a distância correta do olhar. Neste filme, nunca poderia ser dito que ele retrata uma cidade fantasma, já que não há um único plano sem a presença da vida. Às vezes, apenas uma placa de comércio no canto da imagem, um pedestre caminhando pela rua, um cavalo cruzando o quadro ou uma flor que balança ao vento. Mesmo quando só há ruínas, a paisagem sonora impede o silêncio e permite que algum som, como uma fala, piado ou ruminação, esteja presente.  

Deste mesmo modo, as imagens de arquivo que o filme recolhe e contrasta com as imagens do tempo presente mostram um tempo em que o bairro de Muribeca estava em efervescência e a comunidade não estava dividida. No entanto, o contraste dessas imagens não é utilizado para enfatizar os vazios que foram impostos, a decadência de um bairro e sua melancolia,  mas sim para destacar com ainda mais relevo aqueles que persistem na luta pela sua sobrevivência.  E, como dito, o simples fato de permanecerem vivendo nele, seja através do cotidiano e da militância, ou na dimensão do sonho e da memória, já é uma forma de manter o bairro vivo.

 

No início deste texto, menciona-se Griffith como um dos pioneiros do realismo no cinema. Porém, o filme Muribeca nos leva ainda mais longe no tempo e para outras formas. Em uma de suas cenas finais, quando as escavadeiras começam a demolir os edifícios do bairro, um pequeno truque de montagem faz a imagem retroceder no tempo, fazendo com que as paredes derrubadas retornem ao seu lugar original. Esse momento nos remete diretamente a Demolition of a Wall, produzido pelos operários a serviço dos Irmãos Lumière em 1896. Enquanto no filme de Lumière a reversão da imagem era um defeito não premeditado da câmera, em Muribeca ela se torna um gesto poético do filme, como se desejasse ardentemente reverter as destruições, reagrupar as pessoas e reacender a comunidade. Contudo, o cinema pode muito pouco diante dos poderes deste mundo injusto.

Recentemente, foi concluída a demolição de todas as edificações do Conjunto Muribeca após três meses de trabalho. O município se encarregou de cadastrar os antigos moradores e as indenizações foram garantidas por acordo. Aqueles que haviam construído habitações de forma irregular na área do Conjunto Muribeca foram realocados em apartamentos do Habitacional Fazenda Suassuna, por meio do programa Minha Casa, Minha Vida. A Justiça Federal descartou a possibilidade de reconstrução do Conjunto Muribeca e decidiu doar o terreno para a construção de um parque social. 

Embora a comunidade não possa retornar a ser o que era, o bairro da Muribeca continuará habitando em cada um de seus moradores, onde quer que estejam. É assim que o filme Muribeca se torna ainda mais valioso, não apenas como um arquivo ou uma cápsula do tempo, mas principalmente como um lugar para onde se pode regressar.

 

 

 

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