19. Fantaspoa (2023) – “Terceira Guerra Mundial”
Um iraniano feérico e perturbador
Por Ivonete Pinto | 19.04.2023 (quarta-feira)
Terceira Guerra Mundial (Jang-e jahani sevom, Irã, 2022) segue a cartilha da narrativa clássica, com encadeamentos que não deixam fios soltos. São fatos anunciados aqui e ali que acabam retornando, como o veneno para rato e a pulseira da moça deficiente auditiva. A tirania e a opressão acompanham os pontos de inflexão e estão na base dos recados que o diretor iraniano Houman Seyyedi quer passar. Estamos no set de uma grande produção e o filme rodado tem como ambiente um campo de concentração, que recebe a visita de… Adolf Hitler.
Os dilemas morais, presentes em boa parte dos filmes iranianos contemporâneos, mais uma vez são vivenciados pelo homem comum. Este homem comum não é Hitler, caso necessário avisar. É o miserável sem-teto Shakib (Mohsen Tanabandeh, estupendo, visto em O heroi, de Asghar Farhadi), sobrevivendo a custa de trabalhos temporários.
Em um desses trabalhos, Shakib vai parar no set de uma história sobre Segunda Guerra. Com outros peões, pega pesado montando cenários. Logo, eles já são requisitados (compulsoriamente, ninguém é perguntado se gostaria) à condição de figurantes, como prisioneiros judeus num campo de concentração. A situação é tão absurda, que os próprios operários fazem piada com isto, comentando que o filme já era pouco crível, ficaria pior ainda. De fato só fica pior quando o ator que faz Hitler tem um ataque cardíaco e o diretor, a contragosto do produtor, resolve colocar Shakib para fazer o personagem (também compulsoriamente).
Se tudo até aqui soa como comédia, e é, quando o filme vira terror? O título foi exibido no XIX Fantaspoa, dedicado ao cinema fantástico. No material de divulgação, é vendido como drama e suspense, não como terror. Estar na programação do Fantaspoa se justifica porque seu final pode dar esta margem e porque a curadoria do festival é francamente expandida, permitindo a flexibilidade de gênero.
Final do filme a parte – um grande final, aliás – temos uma série de outros elementos que caracterizam a obra como um drama social. A maneira como a engrenagem do sistema trata os operários, como ele é instado a ajudar a amiga surda, como os homens que exploram esta moça agem e como Shakib vai tentar salvar a moça, é o que faz o recheio do enredo. Como garantia de suspense, nunca saberemos todos os reais propósitos dos personagens que cruzam pelo sofrido Shakib. Porém, há algo logo informado para o público: Shakib é sobrevivente de um terremoto, no qual sua esposa e filhas morreram, ficando apenas ele.
Homem comum – Terremotos acontecem com frequência no Irã, o último grande foi em 2017 e talvez, pela cronologia, possa ser o que o filme alude. De qualquer forma, não deixa de ser uma homenagem – ou referência – a Kiarostami e sua trilogia de Koker, que remete ao terremoto de 1990. O importante é que o terremoto é um dado que ressoa na construção do personagem principal, surgindo já no início da narrativa. Uma narrativa que valoriza cada fragmento de informação e que terá repercussão em algum momento. Ao mesmo tempo, Terceira Guerra Mundial é feérico. Nos surpreende em cada esquina, não nos permitindo antecipar (quase) nenhuma situação. Um filme de ação, na contramão daquele imaginário restrito que alguns têm sobre cinema iraniano. E também não se aproxima de uma produção marcadamente política, como o de Mohammad Rasoulof (Não há mal algum, 2020). Está mais para Farhadi quanto a explorar o homem comum envolvido em situação extrema. O que o deixa universal.
Embora desconhecendo os outros cinco longas do diretor Seyyedi, pelas sinopses observa-se a preferência por crimes e suspenses psicológicos. Com Terceira Guerra Mundial, título não muito feliz, ele conseguiu ser indicado ao Oscar pelo Irã, depreendendo-se daí que as metáforas da tirania foram lidas como “isto não é com o nosso país”.
Como drama, o roteiro inventa tanto que abusa, sendo algumas situações de um exagero questionável inclusive. O filme dentro do filme, com Hitler e tudo, permite os exageros de plot twist; mas o resto poderia ficar sem tantos desdobramentos, especialmente no desfecho. Desfecho que não nos autoriza avançar em nenhum detalhe, sob pena de estragar a fruição de quem não viu o filme ainda. E ninguém sai indiferente da sessão.
Além do ritmo acelerado e do enredo rocambolesco, há uma perturbação que não pode ser ignorada. Nela, o cinema como pano de fundo, que sempre foi festejado (Close-up/Kiarostami, Viva o cinema/Makhmalbaf, etc.), emerge como vilão. Shakib nunca sonhou em fazer cinema; o cinema não aparece no filme dentro do filme como lugar positivo da fantasia. Shakib até gosta da ideia de dormir num lugar melhor com a ascensão que interpretar Hitler lhe possibilita. Mas ele não tem delírios neorrealistas de virar astro.
O resultado disto é uma abordagem perturbadora e subversiva. E se o cinema como máquina violenta a destilar vilania é quase recorrente em Hollywood (Babilônia, de Damien Chazelle, é exemplo mais recente), não havia ainda um correspondente no Irã, guardadas as proporções. Terceira Guerra Mundial sai-se mesmo melhor, pois não carrega nas certezas. E porque não é uma estrela do sistema que denuncia os podres dos bastidores, mas um operário analfabeto que vai parar num set por acaso e deseja apenas humanidade.
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