Beau Tem Medo
Freud explica, ou Édipo arrasado.
Por Luiz Joaquim | 20.04.2023 (quinta-feira)
Beau tem medo (Beau is Afraid, EUA/Can./Fin., 2023) pode virar uma nova febre para a juventude. A mesma que elevou Tudo em todo lugar ao mesmo tempo ao filme que ele não é. O departamento de marketing que vem trabalhando no Brasil a difusão do novo filme de Ari Aster (de Midsommar: O mal não espera a noite) está fazendo a sua parte, conquistando aspas de influencers afirmando que no cinema “há um antes e um depois de Beau…”.
Calma. Não é para tanto, podemos afirmar.
Sobre virar (ou não) uma nova febre juvenil vale registrar que Beau… não opera no espectro do famigerado multiverso, tão desejado pelos adolescentes (de todas as idades), mas é certo que o novo Ari Aster carrega um mesmo senso de absurdo e de urgência cômica que está presente no melhor filme de 2022 conforte o Oscar 2023.
O que há de diferente entre os dois filmes é que Aster busca acessar, por relações alegóricas chegando ao grau do absurdo, questões habitualmente emaranhadas no subconsciente do espectador. Sejam elas intra ou extrauterinas.
Por falar em aspectos intrauterinos, a abertura de Beau… é um primor audiovisual de proposição sensorial quanto a vinda ao mundo de um ser humano pela perspectiva de um feto, no caso, o de Beau – pronuncia ‘Bôu’ (vivido por Joaquin Phoenix, sempre bom).
Nascido Beau, temos imediatamente um pulo temporal de quase 50 anos e encontramos o desmantelado protagonista esperando numa antessala para ser atendido pelo seu terapeuta (Stephen McKinley Henderson).
Nada mais sugestivo e resumitivo, que esses dois momentos iniciais, sobre o que teremos diante de nós durante os 179 minutos de projeção que serão apresentadas a partir de então.
Conheceremos esse homem, de meia idade, aflito em sua exacerbada ansiedade, controlado por medicamentos e com medo generalizado diante de qualquer decisão que precise tomar ou desafio que precise superar.
Aster desenha a saga de Beau em cinco momentos narrativos, intercalados por algumas informações sobre a infância do pobre protagonista (com o ator mirim Armen Nahapetian na pele de Beau). Ele é um filho único criado por Mona (Patti LuPome, idosa/ Zoe Lister-Jones jovem), uma viúva e castradora mãe.
A propósito, a delimitação dos cinco momentos marcados neste extenso filme o coloca num conveniente lugar para que a nova geração de espectadores possa encará-lo por partes, quando ele chegar aos streamings.
Num primeiro desses cinco momentos, conhecemos o cotidiano de Beau residente naquele que parecer ser o pior bairro do mundo. Nas ruas, é abordados por assassinos, drogados, tem de lidar com um latino dançando sob um som alto na calçada e até um cadáver já em putrefação estirado no meio da rua.
O absurdo das situações que o espectador verá aqui, podemos dizer, pode servir de ilustração de como uma pessoa afetada pela ansiedade ou crise de pânico se relaciona com um ato tão banal como o de atravessar rua para comprar uma garrafa d`água [usamos ‘ansiedade’ ou ‘crise de pânico’ por desconhecimento de um termo mais adequado no âmbito da psicologia].
Inteligente, Aster abusa do que há de nonsene no humor, para maltratar o coitado do Beau.
O que irá tirar Beau daquele inferno é a necessidade de pegar um avião e ir para aquilo que talvez seja o funeral de sua mãe, mas um acidente o leva ao seio de uma outra família que o acolhe enquanto se recupera.
Aqui, o roteiro (também de Aster) nos sugere finalmente o encontro do conforto familiar que Beau nunca teve na vida, mas o autor vai, aos poucos descascando o que há de disfuncional naquela sorridente família composta por uma adolescência em fúria (Kylie Rogeres) pelos seus próprios traumas com o pai (Nathan Lane) e a mãe (Amy Ryan).
O encontro de Beau, numa floresta, com uma comunidade teatral alternativa nos levará ao terceiro momento da história.
Aqui Aster brinca numa metanarrativa, plasticamente amparada por uma animação, para resumir o quer seria uma vida ordinária – com a qual Beau se identifica –, incluindo o seu desejo de ter uma companheira e formar a sua própria família.
Família esta toda de filhos homens, cuja figura feminina/maternal tem o rosto borrado (exceto quando ela se parece com um homem) para Beau e para nós espectadores; Importante destacar tais detalhes, no contexto edipiano do enredo.
O quarto momento é a hora da verdade. Nosso herói encontra a mãe naquilo que seria o funeral dela, quando os demônios do filho virão à superfície, incluindo um encontro face a face entre o ele covarde de hoje e o que restou dele corajoso no passado. No caso, um fantasma encarcerado há 40 anos, num sótão imundo, onde também sobrevive sua fálica e monstruosa figura paterna.
Beau tem medo encerra, em seu quinto momento, colocando o protagonista sob o escrutínio da sociedade, do mundo. Sendo acusado pelo crime maior de cortar o cordão umbilical tão tarde em sua vida, sofrendo as consequências inerentes a um homem que se desliga da mãe tão tardiamente em sua vida.
O final não é feliz. Nem poderia ser para o pobre Beau, que volta, condenado, para a água. O mesmo ambiente líquido do útero materno, lá no início do filme. Mas desta vez não para começar a vida e sim encerrá-la.
É preciso destacar, por fim, a capacidade inventiva e divertida com a qual Aster cria suas alegorias aqui. A castração sexual sofrida pelo personagem, imposta pela mãe, que escondia a verdade sobre pai de Beau, com quem ele nunca teve contato, se manifesta por uma mentira. Uma mentira que o guiou por toda a sua vida inteira.
Beau sempre acreditou que poderia morrer, conforme dizia a mãe, tal qual faleceu o seu pai, no ato da única relação sexual que teve na vida. A mesma que o concebeu.
A libertação desse inferno da culpa sexual se dá quando Beau reencontra, quatro décadas depois, o seu primeiro e único amor: Elaine (Parker Posey, também sempre boa).
O reencontro entre eles rende uma das sequências sexuais mais inusitadas que conhecemos no cinema mainstream, assim como o todo do filme, que nos leva, aos supetões, aos lugares mais inesperados nessa complexa relação que construímos para nossas vida tendo a culpa como sombra.
“Culpa”, como bem anota em seu caderninho o terapeuta de Beau, destacado em close, lá no comecinho do filme.
Os psicanalistas ‘pira’.
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