Close
A idade (da perda) da inocência
Por Luiz Joaquim | 19.04.2023 (quarta-feira)
Dois meninos, lá pelos seus 13 anos de idade, brincam numa ruína, fingindo ali ser uma trincheira na qual se abrigam contra os mais de 30 inimigos que estão chegando para cercá-los. Empunhando espadas de madeira, resolvem fugir e saem em disparada por um campo infinito de flores multicoloridas. Correm sorrindo, lado a lado, como se ali e naquilo estivesse o maior prazer de suas vidas. E está.
Aquecida pela harmonia doce da trilha sonora composta e conduzida por Valentin Hadjadj (guardem esse nome), a sequência cresce como sugestão do que seria a liberdade em sua mais absoluta representação. Mais: é a representação, em sua plenitude, da vida em si.
A comovente abertura é de Close (Bel., Fra., 2022), filme de Lukas Dhont, que neste 21 de abril chega ao streaming da Mubi. O arrebatamento não se encerra na abertura. A condução narrativa que nos leva a conhecer a força da amizade entre Leo (Eden Dambrini) e Remi (Gustav De Waele) se espraia na medida em que o roteiro de Dhont (coescrito com Angelo Tijssens) nos coloca dentro das miudezas do convívio dos dois.
Entre vários exemplos, um pode traduzir bem o que dizemos aqui. Talvez pela sua beleza cênica, pela simplicidade na composição de uma conversa sussurrada antes do sono da noite – que, afinal, costuma ser um bom e propício momento para o belo se apresentar entre duas pessoas.
Dormindo uma noite na casa de Remi, Leo, já na cama, percebe que o amigo não consegue cair no sono: “Minha cabeça não para”, explica Remi, preocupado com o concerto musical para o qual vem ensaiando. Sussurrando, Leo o conforta contando a historinha de um patinho que acaba de sair do ovo. Fala de sua beleza e de como ele é único no mundo.
Na escola nova, a proximidade dos dois também transparece em gestos concretos – como quando Leo encosta a cabeça no ombro de Remi enquanto assiste à aula -, o que chama a atenção da molecada, maldosa dentro do que é habitual na sociedade que os abarca. Logo, logo Remi e Leo são apontados como um casal.
A insinuação aumenta e vai incomodando Leo, que já está um tantinho mais distante da inocência infantil na qual ainda vive Remi.
Somado o incômodo do primeiro ao seu desejo de se sentir incluído entre os novos colegas, Leo vai se afastando de Remi, que entra em depressão ao ser escanteado pelo amigo mais importante de sua vida. O irmão que ele nunca teve.
Temos aqui, portanto, um filme sobre o luto. Sobre o fim absoluto de uma amizade divina, pautada pela inocência. A morte da inocência estabelecendo a morte do amor fraternal. Estamos diante de uma tragédia, portanto, e Dhont a conduz com maestria.
O ponto sobre o bullying está bem marcado em Close, mas a força do filme se concentra na dor da perda vivida por Leo, o protagonista, que sofre calado, sabedor, lá no fundo, que sua opção repelindo Remi é errada. É aqui que Close se afasta das obras de seus conterrâneos mais famosos: os Irmãos Dardenne.
Ainda que formalmente possa lembrar alguns títulos dos celebrados diretores belgas, Close quer mergulhar mais profundamente na confusão interna de Leo a partir do bullying e não nos desdobramentos sócio-políticos da questão.
Ao não abandonar esse aspecto caro ao personagem, tão bem construído e soberbamente defendido pelo jovem Dambrini, o filme só reforça a gravidade do bullying, mas sem soar professoral. É uma das mais inteligentes maneiras de acessar o espectador. Pela aproximação silenciosa. Pelas bordas do assunto, pela centralidade do seu efeito no humano.
Em termos de proposição sinestésica no espectador, essa confusão interna e intraduzível dor e culpa reprimidas por Leo, pela perda do amigo, encontra aqui o seu método audiovisual constitutivo. Ele está nas situações em que Leo treina hóquei no gelo, em particular no último treino antes da disputa em si.
O ruído agudo das lâminas na pista de gelo, as trombadas graves contra a parede para aprender a cair, as quedas seguidas de gemidos, tudo apresentado em volume alto pela edição de som, tudo inquietante e urgente.
Isso combinado soma uma precisa representação sonora e plástica para o emaranhado de sentimentos represados pelo confuso Leo. Está ali, naquele ruidoso ambiente físico, o espaço por onde pode escoar esse incômodo no menino (ainda que de maneira paliativa).
Outra beleza em Close está em também propor o oposto de tudo isso para realçar a intraduzível tristeza de Leo. Num concerto musical, ao perceber que a mãe de Remi está presente, é o silêncio do seu olhar para ela (para o espectador) o elemento mais eloquente do filme.
Nesse sentido, é assombroso o trabalho do ator adolescente Dambrini, com o seu fixo olhar de olhos claros e assustados.
Close estica até o fim a dor de seu protagonista (e nos leva juntos), mas o filme encerra fazendo-o mirar para a frente. Para as flores do campo onde seus pais trabalham, mesmo que parando para dar uma espiadinha para trás. Como quem observa a sua inocência infantil ficando ali, no passado, para ele poder se tornar um homem com todas as dores que isso signifique.
Como um braço que se regenera após uma fratura e o punho fazendo seus iniciais movimentos doridos, mas necessários para ser ainda mais forte do que já foi.
Veja Close.
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