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Críticas

Memória Sufocada

Mais matizes de um dos momentos mais tenebrosos de nossa história.

Por Humberto Silva | 03.04.2023 (segunda-feira)

– na foto acima, o Coronel Brilhante Ustra sendo interrogado pela ‘Comissão da Verdade’, do Governo Federal.

O assunto ditadura militar na Retomada do cinema brasileiro legou em igual medida importantes obras de ficção e documentário. O golpe civil-militar de 1964 é um ponto de inflexão em nossa história que fez feridas ainda não cicatrizadas. Os quatro anos de governo Bolsonaro, e com ele o bolsonarismo, reavivam o espectro da presença militar na política brasileira. Na sessão de impeachment de Dilma Rousseff (2016), o então deputado federal Jair Bolsonaro homenageou o Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, a quem dedicou o voto pelo impedimento da presidente.

Ustra comandou o DOI-CODI do II Exército de 1970 a 1974. Para manter presente a memória de Brilhante Ustra, Gabriel Di Giacomo realizou Memória sufocada, documentário que tem como centro de atenção o Coronel Ustra, condenado em 2008 pela justiça brasileira, em primeira instância, por comandar sessões de tortura nos anos de chumbo do regime civil-militar. O título do filme faz remissão ao livro de Brilhante Ustra, A verdade sufocada (2006), que conteria a “verdade” que teria sido sufocada pelas esquerdas com o fim do regime civil-militar.

Antes de tudo, uma curiosidade sobre Gabriel Di Giacomo. Tenho escassíssimas informações sobre ele. Sei praticamente nada sobre suas inclinações político-ideológicas, seu envolvimento com temas políticos. O dado notável que tenho dele é a idade: 38 anos. Nasceu, portanto, no momento das Diretas-Já e, assim, no processo de redemocratização. Faz parte, com isso, de uma geração que cresceu com a leitura de livros que tratam dos anos de chumbo no país e ouvindo relatos de pais e avós.

A esse respeito, não desconfio que faria um filme relevante com centro de atenção num personagem cuja memória não deve ser esquecida. O assunto ditadura, verdadeiramente, não se esgotou, mas, com a filmografia já realizada sobre o período, que novo interesse se revelaria em Memória sufocada? Ou, que escolhas fílmicas foram feitas por Gabriel que instigariam o espectador a vê-lo?

Brilhante Ustra talvez não ganhasse novos holofotes se não fosse pelas palavras de um de seus filhotes.

Memória sufocada se detém em grande parte no depoimento do Coronel Ustra, na Comissão da Verdade, em confronto com alguns daqueles que o acusam de, pessoalmente, ter sido torturador. Gabriel fez um filme sincero, equilibrado, que de algum modo deixa o espectador livre para julgar por si próprio o papel de Ustra nos porões da ditadura. O filme exibe sua defesa frente às acusações que lhe são feitas. Trata-se de um documentário com efeito de fato documental, a se tomar como referência para fins didáticos quanto ao tema tortura nos anos de ditadura.

Mas, justamente por isso, Memória sufocada acaba sendo contido no que tange a uma melhor elucidação de como os órgãos de repressão se estruturavam e operavam naqueles anos. Assim como as informações sobre os torturados por Ustra são lacunares. Ora, penso, claro, nos objetivos didáticos a que o filme visaria. O que foi o DOI-CODI? Quando foi criado? A que grupos de guerrilha pertenciam os que acusam Ustra de tortura? Que atuação tiveram na resistência à ditadura? Seria para mim importante num documentário com finalidade didática certos necessários esclarecimentos. Se o espectador já tem essas informações, perde-se a finalidade didática; se não as tem, as falas de Ustra e torturados funcionam como esquetes – careceriam de didatismo.

Por outro lado, o que mais me chamou a atenção de modo positivo em Memória sufocada foi a utilização de imagens de arquivos. A esse respeito, um trabalho de garimpagem louvável. Intercalados ao depoimento de Ustra e dos que o acusam, são exibidos “filmes” institucionais de propaganda feitos pelos órgãos de comunicação da ditadura. Neles, a exaltação da pátria, o respeito aos símbolos do país, o culto à família, que deixa a condução da nação nas mãos dos militares para, assim, tocar a vida com tranquilidade.

Nessas imagens pinceladas com acuidade, o sentido profundo do modus operandi da doutrinação ideológica operada pela ditadura. No contraponto entre depoimento e “filmes” feitos como propaganda, para mim, o “ensinamento” necessário para se apreender o espírito daqueles anos: como combater de forma violenta o que quer que pusesse em risco a paz serena e inconspurcável na qual o povo vivia.

O filme de Gabriel mostraria, então, o lado B da história: houve os porões da ditadura e com eles a tortura e o assassinato para quem ameaçasse a paz dos “homens de bem”. Caberia, com isso, lembrar que esse lado B foi sufocado? E assim sendo estabelecer simetria com “a verdade sufocada” de Ustra?

Penso que a simetria não convém pois com ela se entra no movediço jogo das narrativas. A ditadura e seus efeitos são suficientemente sentidos para que aquele período seja esquecido; ou que se tenha sobre ele uma “memória sufocada”. O Coronel Ustra, como muitos outros que atuaram nos porões (em meus anos de juventude a lembrança mais forte foi a do delegado Sergio Paranhos Fleury, do Dops), seria pouco lembrado se, justamente, não fosse endeusado por Bolsonaro num instante solene. Nas palavras de Bolsonaro, Brilhante Ustra foi o terror de Dilma Rousseff. Na palavra “terror”, a glorificação e lembrança de um herói acusado de ter torturado.

Feita essa observação sobre, talvez, a impropriedade do título, Memória sufocada é mais um importante registro documental dos anos de chumbo. Nos anos por que passamos, deve ser visto e devidamente discutido. O assunto ditadura não é página virada em nossa história. E o cinema, com um filme como Memória sufocada, cumpre um papel vital ao legar às gerações vindouras os diversos matizes de um dos momentos mais tenebrosos dessa história.

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