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1 Comentário

  • Carlos Alberto Mattos

    Embora muito mais modesta, minha resenha deste filme (ainda não publicada) destaca essa concepção envelhecida da mulher como elemento de discórdia entre homens harmônicos.

  • Críticas

    O Rio do Desejo (texto #2)

    A mulher-demônio, mais uma

    Por Ivonete Pinto | 06.04.2023 (quinta-feira)

    Já no seu título, O rio do desejo diz a que veio. E ao lermos a sinopse oficial do filme dirigido por Sérgio Machado identifica-se o enredo todo: O Capitão Dalberto (Daniel Oliveira) abandona seu trabalho na polícia e adquire um barco ao se apaixonar por Anaíra (Sophie Charlotte), uma jovem misteriosa, que exala vida por todos os poros. O casal passa a viver na casa que Dalberto divide com os dois irmãos.

    O título da produção, por sinal,  é  diferente do conto de Milton Hatoum,  “O Adeus do Comandante”, do qual o roteiro foi adaptado e que contou com a colaboração do escritor.  Hatoum decidiu colaborar porque os roteiristas Maria Camargo e George Walker Torres  precisavam ampliar a história do conto para um longa. Então, mais do que uma simples inspiração,  o filme é também  uma obra do escritor amazonense. O que ele inseriu de novo importa pouco, pois os traços de sua obra estão ali: a vivência com o Amazonas e a família como epicentro de personagens em conflito.

    Com o título, somado à sinopse,  O rio do desejo não tem como escapar da ideia de pecado, imbricado à religião.  Nesta chave, pode-se compreender, que  seja legado à mulher o papel desestabilizador, que veio ao mundo para provocar os homens. O demônio, enfim.  A existência das mulheres não teria outra função a não ser tirar os homens do seu prumo ao  negarem-se a “pertencer” a um só. No filme, a desgraça já estava em andamento.

    Anaíra, que sofreu abuso sexual do marido de sua mãe,  entrou para a família de Dalberto para dar o fecho iniciado anos antes, quando a mãe dos três abandonou o marido para fugir com outro homem. Nunca superaram a traição, entendida  como uma traição aos filhos também. Todos queriam vingar-se da mãe, todos queriam possuir a mãe. É muito Freud para um filme só. E embora se possa prever alguns desdobramentos, acompanha-se com interesse o jogo de sedução dos irmãos de Dalberto para com a cunhada.

    Anaíra não é exatamente a rainha Gertrudes, de Hamlet, que se casa com o cunhado.   Não há tramas palacianas, disputas de poder nem parricídio. Diferente de Shakespeare, Hatoum ocupa-se mais com os tormentos da carne do que os da alma. Assim sendo, a sexualidade supera a consanguinidade. O romance  de Hatoum, Dois irmãos, adaptado como minissérie da Rede Globo, evoca Caim e Abel, enquanto  O rio do desejo toca na carnalidade.

    Carnalidade, molhada pelo rio

    O olhar – Dito desta forma, quem ainda não viu o filme pode concluir que estamos diante de uma obra que explora o corpo de Anaíra de modo déjà-vue.  O tratamento que Sérgio Machado dá à personagem e à atriz que a defende é cuidadoso. Através da decupagem, com fotografia de Adrian Teijido, este cuidado está em sintonia com nosso tempo: o corpo de Anaíra/Charlote é poupado daqueles enquadramentos que o cinema reproduz historicamente, que  expõe o corpo feminino para o prazer dos homens, o prazer do olhar masculino. Aqui, temos mais closes no rosto dos homens olhando para Anaíra do que Anaíra sendo olhada. Uma ótica feminista, portanto, que pode frustrar certos voyeurs, mas que engrandece o filme ao colocá-lo em outro patamar.

    O que fica de incômodo, no entanto, é menos uma perspectiva de Laura Mulvey defendida em seu ensaio Prazer visual e cinema narrativo, do que o fato de que ao escolher adaptar este texto de Hatoum, os roteiristas não tinham como fugir a esta sina bíblica e ao papel da mulher-demônio. Neste conto, elas são assim, arrastam os homens para desfechos trágicos.

    A mulher-demônio e os desfechos trágicos

    Seria o caso de dizer que a literatura de Hatoum envelheceu? Certo que não. Seus livros nos apresentam um Brasil profundo e desconhecido, com uma força narrativa e com personagens sempre à beira do precipício. Mas a constatação de que as mulheres tenham que carregar este destino é que é complicado aceitar. Porque é complicado consentir que, em nome da fragilidade masculina (universal e atemporal?), elas precisam  moldar-se a uma ideia de existências santas, caso contrário, as tragédias se consumam. Mais ou menos como a situação de mulheres  nos países que seguem o Corão, obrigadas a cobrir os cabelos para que os homens não sejam tentados a atacá-las. Ou seja, eles é que deveriam resolver seus problemas de autocontrole, não?

    Em O rio do desejo, o personagem mais velho dos três irmãos (Dalmo/Rômulo Braga) parece ter um pouco mais de controle. Contenta-se a muito custo em observar  Anaíra, fotografá-la (as imagens reveladas no escurinho do laboratório são o pretexto óbvio para ele se “acalmar”) e procurar uma prostituta A mulher do irmão é inatingível, não deve ser seduzida, assim como uma mãe.  Mas Anaíra estava ali, disposta a se “entregar” (termo que deveria ficar no passado) a qualquer um deles, pois na lógica bíblica ela não tem poder de decisão, não racionaliza; ela só tem desejo,  não se nega à traição e por tabela ao pecado (afinal, trata-se do demônio, certo?).

    Amor e desejo, combinados ou separados, costumam ser normatizados pelas sociedades, principalmente  quando calha de envolver membros da mesma família. As variações são mínimas de cultura para cultura, mantendo-se certas proibições. Traições são comuns e menos impactantes quando praticadas por homens. Quando as mulheres traem,  seus  filhos ficam marcados para todo o sempre. Ainda assim, como vimos no mais recente Spielberg (Os Fabelmans, 2022), é possível fazer do trauma um bom filme sem matar ninguém. Na literatura, e quando os enredos acontecem em um país inapelavelmente machista como o Brasil, os desfechos envolvem honra ferida e a necessidade teleológica da morte.

    Claro está que a satisfação dos desejos passa pelos interditos culturais e religiosos e neste contexto a culpa  ocupa lugar de destaque. Se o controle não é alcançado, a culpa vai cobrar seu preço. De modo que o sofrimento é tão certo quanto a máxima de que todo rio corre para o mar, exceto os afluentes. Neste filme, o rio Negro é onipresente, não deixando dúvidas quanto ao simbolismo de sua força. A expectativa fica em saber como ele vai correr, qual seu curso para chegar ao mar.

    O rio, claro, é onipresente. A questão é: como ele corre aqui?

    O rio – Luiz Joaquim  já apontou o problema e foi direto ao ponto: como um rio, ele necessariamente corre para uma direção; o filme também, em sua tragédia  anunciada.

    Acontece que mesmo um rio encontra quebradas, desvios, cascatas e aquela famosa frase de Heráclito, de  que não  podemos entrar duas vezes no mesmo rio porque suas águas não serão mais as mesmas, é metáfora bem-vinda quando pensamos  nos seres humanos, sempre em transformação.

    Se um rio está em constante mudança, a personagem caudalosa de Anaíra talvez não tivesse como evitar a tragédia, porém sua concepção enquanto mulher é um tanto plana e apenas funcional: entra na vida dos irmãos para atraí-los e desestabilizá-los.

    Num exercício hipotético, embora improvável, digamos que o filme fosse dirigido por Lucrécia Martel, que nos deu o instigante A menina santa  (2005)*. Nele, Martel explora o regime das águas associando-o aos sons e em sua essência, há o desejo vinculado ao pecado e inclusive ao crime (a menina é menor). Como a diretora argentina não cai em armadilhas puristas  conservadoras, e como ela convida  o espectador a tirar suas próprias  conclusões,  nos leva a comparar os dois procedimentos. Ok, são filmes incomparáveis, mas trazer este exemplo ajuda a ilustrar um pouco melhor o desconforto por, mais uma vez, o cinema nos presentear com uma personagem  feminina demoníaca, cuja finalidade é corromper  os homens. Por mais interessante que seja o filme.

     

    * “Lucrecia Martel e o benefício da incerteza”, Revista Teorema nº 8, escrito em parceria com Eduardo Santos Mendes, pode ser visto clicando aqui

    Leia também crítica de Luiz Joaquim para O rio do desejo

     

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