Pacifiction
Os franceses na Polinésia – um estrago em grande estilo
Por Ivonete Pinto | 20.04.2023 (quinta-feira)
As 2 horas e 45 minutos de duração de Pacifiction (Pacifiction – Tourment sur les îles, Fra./Esp./Ale./Por., 2022) dizem muito de sua intenção em não oferecer maiores concessões aos formatos estritamente comerciais, pois que corre o risco de não encontrar janelas e espectadores dispostos à experiência.
Apesar de cansativo em alguns momentos, especialmente quando o protagonista divaga com sua pretensa sensibilidade de romancista. Mesmo aí o que temos é o aprofundamento de um personagem com muitas camadas. A exposição destas camadas requer tempo e o resultado é uma construção de nível literário, como se o filme e seu protagonista tivessem saído de um (bom) livro de 700 páginas. Mas não nos esqueçamos as entrelinhas!
Esta coprodução que envolve Espanha, França, Alemanha e Portugal é dirigida pelo espanhol Albert Serra, que assinou entre outros A Morte de Luís XIV (2016), trazendo à tela um personagem também francês e atormentado, só que de matriz biográfica. Os tormentos do protagonista de Pacifiction deslizam, ora rumo ao cinismo, ora a uma consciência histórica e dialética de seu papel em uma colônia francesa no arquipélago polinésio no tempo atual.
A presença da França, como país colonizador, é o ponto de partida para entendermos a teia de relações com os forasteiros e com os nativos da ilha em seus múltiplos interesses. O benefício comercial de ambos os grupos fica rondando todas as ações.
Benoît Magimel é De Roller, o Alto Comissário, cargo que ocupa em uma ilha da Polinésia Francesa, o Taiti. Não se sabe se seu nome é um apelido ou não, mas o significado como verbo (andar de patins), pode bem ilustrar como ele se movimenta naquele cenário.
Magimel/De Roller, como um Gérard Depardieu melhorado (inclusive fez seu filho bastardo na ótima série Marselha), controla qualquer histrionismo com habilidade. Seu corpo, diferente do conterrâneo, se impõe menos que o olhar. Porém é um ator que preenche o espaço, não importa qual o tamanho do enquadramento nem com quem contracene. Um trunfo do filme, sem dúvida, que tem ainda coadjuvantes à altura, como o espanhol Sergi López e os polinésios Matahi Pambrun, como o jovem líder local, e Pahoa Mahagafanau, como a namorada de De Roller (atriz trans em seu primeiro filme. O fato de ser trans, acrescenta mais uma camada à complexidade do protagonista). Os dois polinésios representam as facetas do colonizado: dos que reagem ao colonizador e dos que aderem a ele. Um quer o poder, outro quer ascensão social. Há um jogo entre quem é inocente e quem não é, que pela engenhosidade do roteiro podem ser tipos ambíguos, para que o espectador vá percebendo aos poucos o que acontece no subterrâneo dos interesses. O roteiro, aliás, é assinado por Baptiste Pinteaux e Albert Serra.
Claire Denis (especialmente em Bom trabalho/Beau travail, 1999) é referência obrigatória quando pensamos do cinema produzido pelo colonizador em terras do colonizado. Na verdade há uma produção imensa sobre o estrago da França em suas (ex)colônias, cabendo citar até Michael Haneke (Caché, 2005). A França ainda vai render muitos filmes neste assunto e nenhum, evidentemente, dará conta de todos os desdobramentos que uma ocupação significa para quem é ocupado, ainda mais se o ponto de vista é sempre do ocupante…
O personagem de Magimel, De Roller, tem consciência (cínica) do que representa ali como Alto Comissário e isto torna suas atitudes mais graves. Ele tem um patrão, que é o estado francês, e vai fazer de tudo para defender a sua colônia da invasão de russos, americanos, ou chineses, ou quem quer que esteja querendo fazer daquela ilha um quintal para testes nucleares. Esta trama percorre todo o filme, tecida em longas conversas em clubes noturnos do lugar, sem nunca tirar de perspectiva que a ilha é da França. Portanto, o processo ainda está no campo da necessidade de independência, descolonização. Até chegar o momento da decolização, os polinésios vão ter que falar muito a língua de Flaubert ainda.
Os galos – De Roller se esgueira – e desliza como se estivesse andando de patins – com sua conversa sensível e intelectual, fazendo incontáveis discursos (ele adora ouvir o próprio pensamento). Parece um cara legal por quem todos na ilha têm uma certa afeição. Seus ternos claros e seus indefectíveis óculos escuros, mesmo à noite, podem render um simbolismo óbvio de alguém que não quer enxergar direito o que está à frente. Contudo, sua aparência fica fora de lugar quando acompanha lutas de rinha de galo. Os sutis trejeitos faciais de Magimel, que a câmera acompanha sem alarde mas com precisão, nos informam quão brutal ele pode ser. A metáfora da rinha é sugerida por ele como inspiração para o elenco de dançarinos de seu clube coreografar. Ele quer violência, ele quer sangue no espetáculo de humanos também. Naturalmente, o uso desta alegoria não precisava existir; é por demais um clichê. Só não fica exatamente sobrando no filme porque surge no momento certo, quando passamos a entender melhor a urdidura da trama.
Na dança de marionetes do filme, há lugar para o papel da Igreja (incluindo Testemunhas de Jeová), que quer proibir o cassino que o Alto Comissário defende. Oportunidade para De Roller impressionar seus amigos com a frase “Não fizemos a Revolução Francesa à toa!” Além da Igreja, como instituição, há o papel da polícia, da família, da cultura e do Estado. Dito assim, soa como se Pacifiction adotasse algum manual marxista. Mas é visível a representação dos aparelhos ideológicos do Estado exercendo suas funções. E há algo que paira no ar como um drone onipresente: o capitalismo internacional, no qual a guerra com os testes nucleares não é alegórica.
A França, através de De Roller, ao ser contrária aos testes, está querendo proteger sua colônia? Em bom português: kkk. O próprio De Roller pode ser o último a saber das intenções de seu patrão (o submarino, possivelmente, seja um fantasma francês que seu Alto Comissário desconhece). Desde a primeira metade do século XIX a França anexou as ilhas polinésias (são mais de 100), incluindo o Taiti. A França chama de Coletividade de ultramar. E qualquer google ou ChatGTP sabe que o país de Luís XIV só parou seu programa com testes nucleares nas ilhas devido aos protestos internacionais.
O paradoxo francês não está só em comer muito queijo e não enfartar. Mas em defender certos povos e ao mesmo tempo ser o causador de um cenário de miséria em suas ex e atuais colônias. Precisou uma primeira-ministra da Itália, a fascista Giorgia Meloni, para dizer ao presidente Macron que a França é hipócrita. Ela cobra que a Itália receba os refugiados que desembarcam na Europa, mas é a causadora de um cenário de imigração forçada sem precedentes.
Bem, estes são desdobramentos que o filme não alcança, até por falta de tempo. Entretanto, o personagem de Magimel pode levar o espectador a refletir para mais além das suas 2h45 min. Ou seja, o espanhol Serra (e a Espanha, por seu turno, poderia gerar outros Pacifiction) fez um filme contundente que merece ser visto. Ele foi exibido na Mostra Internacional de São Paulo e também em Cannes no ano passado. Monumental, disseram os franceses em sua má consciência.
Belo texto. Aguçou a curiosidade.
Obrigado, Gabriel. Continue nos prestigiando com a sua leitura.