Sem Ursos
Um Panahi revigorado, ainda que exausto
Por Ivonete Pinto | 12.05.2023 (sexta-feira)
Demorou! Demorou para Jafar Panahi entregar a câmera ao outro. De todas as formas pelas quais o diretor tenta burlar a proibição de filmar (ver nosso artigo sobre Escondida, onde sua situação judicial é detalhada), entregar a câmera para uma equipe que está em outro país ainda não tinha sido experimentada. Panahi tenta se reinventar através da metalinguagem, sem perder o teor político de denúncia que o identificou. Nem sempre é feliz. Nem sempre consegue ser criativo, como nos pouco defensáveis Cortinas fechadas (2013 ) e Táxi Teerã (2015). Sem deixar de investir pesado na mistura de fato e ficção, às vezes o lugar-comum se sobrepõe. O que não é o caso deste seu mais recente filme.
Em Sem ursos, Panahi é, ele próprio, um diretor que aluga um quarto no interior do interior do Irã. É de lá que, apesar de uma internet claudicante, dirige sua equipe que está há poucos quilômetros dali. O lugarejo não foi escolhido aleatoriamente, pois o filme está sendo rodado em uma cidade na Turquia, na região em que predomina a etnia azeri. Todos mais ou menos sabem que ele não pode atravessar a fronteira, porque ainda paga uma pena (pela primeira vez em 14 anos, teve autorização para viajar até o festival de Cannes. Vamos ver o que acontece…)
Esta situação engendrada pelo roteiro inclui cenas do filme rodado em terras turcas, o que cria a oportunidade de vermos um filme dentro de outro filme. A chamada mise en abyme é por demais conhecida no cinema e a engenhosidade não está nela propriamente, mas no contexto no qual o diretor não está presente.
A ausência do diretor no set já era praticada por Abbas Kiarostami em Five (2003), quando, supostamente, dirigiu algumas das cinco sequências fora do carro onde se passa todo o filme. Kiarostami (1940-2016) passou a defender o quanto o diretor não é essencial. Um pouco teoricamente, já que sempre teve total controle sobre tudo. É o que possui Panahi, mesmo nas cenas filmadas na Turquia.
Nesta produção, o personagem ficcionalizado na figura de Panahi não consegue nem internet para se comunicar com a equipe que roda o filme, que é forçada a improvisar sem orientação do diretor. Ao que tudo indica, o melodrama meio desbragado está na concepção do filme dentro filme, em estilo muito diferente de Panahi, o que só reforça que ele interpreta um personagem diretor de cinema, casualmente com detalhes biográficos semelhantes aos dele.
Isto é muito interessante porque permite ao espectador enxergar em Panahi não apenas ele, mas todos os diretores atualmente encarcerados por aquele regime teocrático. Mohammad Rasoulof, de Não há mal algum (2020, Urso de Ouro Festival de Berlim) estava preso nas mesmas condições de Panahi até fevereiro deste ano. A conferir se Rasoulof terá o mesmo destino de prisões e solturas e quando terá permissão para sair do Irã. Se a prisão domiciliar de Rasoulof render o mesmo que rendeu a Panahi, fará muitos filmes de forma ilegal. Porém seu desafio criativo será maior, pois que Panahi está esgotando suas possibilidades no campo as metáforas. Isto não é um filme (2011), o primeiro realizado como “aprisionado”, é ainda seu melhor exemplo de inventividade tendo o cinema como mote e a liberdade como tema.
Tradição azeri – Em Sem ursos, pode-se destacar várias situações em que Panahi tira proveito das circunstâncias para falar do Irã profundo, do Irã com várias etnias e cada uma com uma prática cultural milenar própria. Para os azeris, por conta de uma tradição que diz que um casal não poderia ser fotografado, o roteiro constrói um labirinto de micro conjunturas que tornam o filme muito maior do que o mero fato de estar ali um diretor filmando à distância. Panahi se envolve com as questões do vilarejo, usando muitas vezes como meio o proprietário do quarto que aluga. Personagem super prestativo, é Ghanbar (Vahid Mobasheri) a quem Panahi dá uma câmera para que faça imagens de um casamento. Situações cômicas acontecem (humor que, diga-se, nem é comum em seus filmes) pelo fato do sujeito não saber usar a câmera. O roteiro obtém vantagem disto para explorar outras dimensões narrativas, que o espectador acompanha com muito interesse, com uma certa euforia até.
O único passo em falso que se poderia apontar em Sem ursos é relativo ao filme dentro filme. Nele, um homem e uma mulher iranianos aguardam por um passaporte falso para entrarem na Europa. Em dado momento, a quarta parede do filme dentro do filme é quebrada e sua função é totalmente justificada. Quando se repete esta quebra, soa como derrapada; perde o impacto porque o público já não é mais pego de surpresa. Além do mais, não há elementos suficientes para nos envolvermos no drama do homem e da mulher. Aparecem muito pouco no filme para gerar a empatia necessária para o que acontece com eles no final. Mesmo assim, o poder de invenção do resto, compensa.
Também a destacar a solução encontrada no roteiro para a saída de cena do personagem do diretor. Ali ele é, ou pode ser, Jafar Panahi e seu cansaço, seu sofrimento por tantos e tantos anos sem liberdade, numa situação kafkiana. Não há como saber que filmes ele teria feito nos últimos dez anos não fosse abraçar projetos tão restritos. E provavelmente não há experiência que se equipare a sua. Compreende-se o cansaço, o pessimismo, a desesperança. Somos testemunhas de suas derrotas, enquanto observamos seu físico mudar ao longo dos anos. O vemos envelhecer diante da câmera, sofrendo o mesmo abuso político das autoridades iranianas ano após ano, filme após filme, mesmo que a notoriedade internacional tenha lhe protegido de punições mais severas. Em todo caso, é preciso ser muito forte para aguentar. Allahu Akbar.
Visto no Festival Filmelier, o filme entrou em cartaz em algumas capitais.
[Nota do editor: No Recife, Sem ursos está em cartaz no Cinema da Fundação Joaquim Nabuco/Derby]
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