Uma Juventude Alemã
O pós-nazismo e o terrorismo como lição para os nossos dias
Por Ivonete Pinto | 05.05.2023 (sexta-feira)
– na foto, Ulrich Meinhof, jornalista e cineasta. A personagem mais emblemática do documentário.
No Dia do Trabalhador, nesta semana, uma série de títulos foram disponibilizados no streaming e em mostras especiais para marcar a data. A plataforma Filmicca trouxe Uma juventude alemã (Jean-Gabriel Périot, 2015), um documentário de compilação, que se utiliza de arquivos de imagens e áudios. O tema central é o surgimento e radicalização de jovens que cresceram na então Alemanha Ocidental, carregando o peso do nazismo. Carregando o peso de terem pais e avós que contribuíram de alguma forma para o Holocausto e para a escalada sangrenta de Hitler. O filme, uma coprodução França, Alemanha e Suíça, abre com jovens nas ruas em discussões acaloradas com pessoas mais velhas. Eles as indagam com dedo em riste: de que lado vocês estavam?
Por mais distante que possa estar da realidade atual, a situação nos remete diretamente ao nosso momento social-político e a projeção que nos cabe fazer. As futuras gerações vão nos cobrar. Pois se lá o nazismo é uma ameaça constante, aqui as sementes da extrema direita continuam sendo regadas. Lá a crise civilizatória parece que arrefeceu com governos como o de Angela Merkel e com leis sempre sendo aplicadas contra organizações nazistas; aqui resiste-se a admitir que boa parte da população nega o nazismo, mesmo que o apoiando de maneira cada vez mais aberta. O ovo da serpente foi gestado há horas.
O título Uma juventude alemã deixa claro que há um recorte explorando o comportamento de um grupo de jovens; não representa, portanto, toda a juventude alemã, pois que entre ela certamente havia os alienados, os nazistas de carteirinha e a esquerda.
O documentário é canalizado para o grupo Baader-Meinhof, batizado como tal pela imprensa, que viu na jornalista Ulrike Meinhof e no estudante Andreas Baader, a liderança da Fração do Exército Vermelho (RAF). Grupo politizado e armado, que tinha outros militantes de peso também personagens do filme: o advogado Horst Mahler, o cineasta Holger Meins e a estudante Gudrun Ensslin.
Rico em imagens da televisão da época, com muitas entrevistas, o documentário igualmente explora filmes experimentais produzidos nas décadas de 1960 e 1970. Nesta junção, temos o perfil de jovens que se opõem à exploração dos trabalhadores (uma das entrevistas de Ulrike pode ser especialmente atualizada), ao imperialismo americano, ao passado (recente) nazista, à guerra do Vietnã, ao Xá da Pérsia, etc, etc.
Aliás, no contexto internacional, além da Guerra do Vietnã (que no Vietnã é chamada de Guerra de Resistência contra a América), uma grande luta da juventude alemã de esquerda era pela queda do Xá Reza Pahlevi no Irã. Uma manifestação contra o Xá resultou na repressão policial com um morto e alguns presos. O assassino foi cometido por um civil que justificou o ato porque o estudante era comunista. A ironia é que o Xá foi derrubado em 1979 graças a união da esquerda persa com o clero xiita e deu no que deu… Nada como ver a história em perspectiva. Mas naquele momento, era a luta certa para tirar um déspota do poder.
Curioso notar como a imprensa, que faz a intermediação de boa parte do filme, defende os interesses do governo e dos mecanismos de repressão aos estudantes. O que havia de mídia alternativa era representada por Ulrich Meinhof, da revista de protesto Konkret (que ela rompeu com alarde). Ulrich, pode-se dizer, é a personagem mais emblemática do documentário. Uma jovem jornalista e cineasta, destemida, feminista, articulada, que aparece num programa de TV defendendo o direito à greve de trabalhadores. Ela expõe os fatos com clareza e determinação. A lamentar que o documentário não tenha dado mais espaço, nesta entrevista, para a TV alemã, para que tivéssemos ideia de como ela foi contraditada pelos convidados que representavam pensamentos opostos.
Academia de cinema – A Academia de Cinema de Berlim teve papel importante e tem participação generosa na produção. O festival de filmes experimentais organizado pelo Academia dava vazão a toda manifestação utópica e radical. Viam o cinema como um meio de ativismo político, compreensão que as classes dirigentes não tinha, incluindo reitores de universidades. A escola foi ocupada pelos estudantes com cartazes com dizeres como “Vamos pegar em armas”, “Entraremos no sistema para causar sua destruição”.
Um tanto diferente de hoje, os estudantes de cinema faziam filmes assumidamente políticos, engajados, queriam mudar o sistema de olho no cenário internacional, nos problemas nacionais e com uma estética que negasse o establishment. Entre todos os filmes já feitos sobre o Baader-Meinhof, o que mais ganhou visibilidade, tendo concorrido ao Oscar de Filme Estrangeiro, é a ficção O complexo Baader Meinhof, (2008) de Uli Edel.
Trechos de um filme para a TV alemã ganham destaque em Uma juventude alemã e por causa dele podemos concluir por que a população em geral sentia-se amedrontada. “Quando deixar de ser tolerante e começar a atirar pedras”, é um slogan presente em Brandstifter (Os incendiários, 1969), de Klaus Lemke, que trata dos ataques incendiários de Andreas Baader e Gudrun Ennslin a uma famosa loja de departamentos de Frankfurt em 1968. Margarethe von Trotta está nos créditos.
Note-se que todos eles eram estudantes de classe média. A imprensa se perguntava, por que raios deveriam agir de forma violenta? Ser de classe média, parecia não combinar com o terrorismo, caminho seguido pelo Baader-Meinhof. O terrorismo era rechaçado como ferramenta política pela imprensa e, por tabela, pela população. Em mais um programa de TV, um filmete introdutório explica o que é terrorismo internacional. O programa de TV alemão informa que em 1968, o terrorismo alcançava 18% do número total dos atos de violência no mundo, um ano depois, já eram 51%.
Descontentes com a “solução” do pós-guerra, que dividiu o país em República Federal da Alemanha (ou Alemanha Ocidental, capitalista) e República Democrática Alemã (ou Alemanha Oriental, comunista), a palavra de ordem era “ação”. Pode-se ver hoje aquela juventude extremada como seres utópicos e ingênuos querendo colocar a teoria na prática através de sequestros, atentados a bomba e assaltos a bancos. Mas considerando a sombra recente do papel de dirigentes e da população durante a Segunda Guerra, naquele momento, talvez fosse um faça a coisa certa.
Um tema que passa de raspão pelo filme é o apoio de intelectuais alemães ao nazismo. Um dos casos mais notórios é o de Martin Heidegger. A propósito, “Heidegger em ruínas” (Richard Wolin, 2023) põe uma pá de cal em quem ainda duvidada da adesão do filósofo ao nacional-socialismo de Hitler. Nesta linha, vale mencionar outro lançamento deste ano, “Socialismo Fascista”, de Pierre Drieu la Rochelle (Trad.: Humberto Silva). Um filósofo francês que assumia o fascismo como solução, tendo virado colaboracionista na França ocupada. Vale a pena nos inteirarmos sobre o pensamento de figuras como ele não só porque influenciaram boa parte da intelligentsia da época, mas também porque continuam influenciando.
Como registro final sobre Uma juventude alemã, observa-se como frustrante a opção pela ausência de créditos para identificar alguns personagens. Em um momento, parece ser Rainer Werner Fassbinder quem lamenta e sofre pelo suicídio de Ulrich Meinhoff na prisão. É preciso aguardar os créditos finais para tirar a dúvida. Trata-se de cenas de Alemanha no outono (1978), que reuniu vários diretores, entre eles Fassbinder , Volker Schlöndorff e Alexander Kluge. O filme discute a validade dos sequestros comandados pelo grupo Baaden-Meinhof . Um tempo que ninguém quer que volte, mas uma coisa é não ser partidário das suas táticas, outra é entender contra o que este grupo se insurgia. E não era contra vacinas, não.
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