Uma Vida Sem Ele
A persona de Huppert nunca esteve tão talhada
Por Ivonete Pinto | 19.06.2023 (segunda-feira)
Se não for muito rebuscamento, diríamos que Uma vida sem ele (À propos de Joan, 2022) é um filme ondulado. Acontecem umas desgraças aqui e ali e a protagonista Joan (Isabelle Huppert) parece se movimentar em ondas, às vezes com mais leveza, às vezes com menos. E não raro somos arrebatados pela trilha musical assinada por Jérôme Rebbotie. Uma trilha clássica, com supremacia para piano e violino, a nos mover para dimensões de extremo prazer em meio ao drama que vai se erguendo sob a direção de Laurent Larivière (Eu, soldado/Je suis un soldat, 2015, também em torno de uma mulher em um núcleo familiar).
Este é apenas o terceiro longa do diretor, mas a considerar o mais recente, estamos diante de um certo cinema francês que conjuga roteiro bem construído (do próprio Larivière com François Decodts), com elenco admirável, montagem que não se alardeia (Marie-Pierre Frappier) e nos conduz com firmeza no labirinto de Joan Verra.
Um filme que poderia ser assinado por François Truffaut, porque não objetiva transgredir a história do cinema; quer somente apresentar um enredo envolvente, utilizando-se de uma montagem criativa, sem ser revolucionária. Possivelmente a alusão a Truffaut se deva a uma leveza e a um afeto encontrado na obra do diretor de Jules e Jim. Em Uma vida sem ele, mesmo as idas e vindas no tempo não estão ali para confundir, ou apenas jactar-se de não ser linear. Há uma função bem específica, pois parte da história se passa na cabeça de Joan, principalmente a partir de um acidente com o filho, que irá marcá-la profundamente.
Há que se prestar atenção na cena de abertura, quando Joan na direção de um automóvel fala para a câmera. Ela conta a história de uma fotografia de seus pais, informa que o seu nome estranho tem a ver com o fato de ser filha de pai irlandês e mãe francesa (o que nos permite remeter também à escritora americana Joan Didion).
Esta cena funciona um tanto como chave, pois ali a personagem desmente o que recém havia contado sobre a foto da família. O “aviso” dela nos lembra a abertura de Verdades e mentiras (F for Fake, 1973) de Orson Welles. Como neste falso documentário, Uma vida sem ele mantém o espectador em um estado de alerta permanente quanto ao que virá depois de cada sequência.
E mais não dá para avançar, uma vez que as surpresas são a cereja do bolo da narrativa. Também não é o caso de trazer a comparação com mais filmes, para não correr o risco de entregar o jogo (um título em especial, para quem viu ambos os filmes, é uma referência imediata). O fato é que Joan conheceu um bate-carteiras por quem se apaixonou e por quem abdicou de uma vida confortável até ser abandonada por ele, não sem antes ter tido uma experiência atrás das grades. Teve um filho, se tornou escritora e editora de sucesso. Ao mesmo tempo, a história de sua mãe não perde para a dela. Aliás, a mãe teve uma vida até mais interessante que a da filha, com reviravoltas que Joan só vai conhecer no mesmo momento que o espectador.
O filme é econômico em termos de personagens. Os poucos secundários, como os homens na vida de Joan e seu próprio filho, no entanto, têm a força de mudar o destino da protagonista. Mulher na casa dos 60, meio durona, meio cínica, sempre fria, é a cara de Isabelle Huppert. Graças à persona da atriz, o filme não é o drama (ou o melodrama) que alguns podem esperar a partir das peças de divulgação do filme. E a memória, que em princípio é a mola propulsora do enredo, entra no campo da imaginação. Aliás, memória sem imaginação soa como impossibilidade.
A atriz se transforma a cada passagem de tempo, para frente e para trás, sem que notemos facilmente os efeitos visuais, nem mesmo uma maquiagem mais pesada (na fase da personagem por volta de 20 e poucos anos, é vivida por Freya Mavor). Mérito desta atriz camaleônica que é Huppert, capaz de mudar tanto e ser sempre ela. Desde 1972, quando estreou no cinema com Uma lágrima…um amor… (Nina Companeez), arrisca-se em projetos de diretores muito distintos, de Rithy Panh a Paul Verhoeven, de Michael Haneke a Hong San-soo.
Quem já teve a oportunidade de ver Isabelle Huppert no teatro concorda que ela funciona do mesmo modo, com um magnetismo ímpar. É provável que por não ser vinculada – nem refém – de uma beleza como a de Isabelle Adjani (protagonista, aliás, do filme de 1972), Huppert foi mais livre para fazer escolhas. Escolhas relevantes para a história do cinema contemporâneo, que raramente desapontam os cinéfilos. Este Uma vida sem ele, então, foi feito para ela.
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