X

1 Comentário

  • Carlos Alberto Mattos

    Ótima conversa. Da Minh-ha infelizmente só conheço o filme com as mulheres vietnamitas. Vou guardar esse artigo para voltar a ele quando puder assistir aos demais.

  • Artigos

    A Voz da Mulher e o Cinema de Trinh T. Minh-ha

    Notas sobre a cineasta vietnamita

    Por Humberto Silva | 10.07.2023 (segunda-feira)

    A conhecida votação da Sight and Sound de 2022 colocou Jeanne Dielman (1975), de Chantal Akerman, no topo como melhor filme da história do cinema. Não me proponho a entrar em discussão sobre se o filme de Akerman é ou não o “melhor” (falso debate que diz menos sobre o valor do filme e mais sobre paixões, torcidas, como os falsos debates no futebol). A escolha, de qualquer forma, carrega seus efeitos. Há, não há como negar, efeito midiático. Como também efeito-fetiche, que faz de Jeanne Dielman uma obra a ser vista de modo diferente (com a ambiguidade que o “diferente” pode ter…), uma vez carregando o status de “melhor”.

    Abro mão, então, da discussão sobre o valor interno (imanente) de Jeanne Dielman, que justificaria escolha da Sight and Sound (escusado dizer que na escolha a soma de votos de críticos, portanto…). Para o que proponho aqui, por outro lado, condicionantes externos merecem realce ao estimularem embates sobre o momento da escolha: quase cinquenta anos depois de sua realização (para a História em geral, tal distância temporal é uma nesga; para a “história do cinema”, um oceano…). Com isso, seu valor em razão do que ele representa quase meio século depois, do que simboliza o status de “melhor”, do que afirma num mundo cujos valores são outros. No caso, um filme dirigido por uma mulher encabeçando pela primeira vez… a lista da reputada publicação. Uma posição que significa (malgrado o filme não tenha em seu conteúdo propósito explícito), assim suponho, situar o cinema e a realização de Akerman no plano da política, ou do poder. Leni Riefenstahl, no antípoda (sobre a mulher e sobre o poder), não deixa de suscitar questões quando se pensa em uma mulher atrás das câmaras. A política, ou o poder, em Akerman exige esforço para ver o que é tácito; ou, o que está nas entrelinhas.

    Após quase meio século, um filme dirigido por uma mulher lidera a lista da Sight and Sound. “Jeanne Dielman” (1975), de Chantal Akerman assume o topo.

    A votação da Sight and Sound tem para mim, destacadamente, importância política, ou de poder. A “questão” da mulher, do gênero, do feminino, do feminismo nos dias de hoje se impõe nas reivindicadas “pautas identitárias”. Essa mesma “questão” tinha outro sentido cinco décadas atrás (o filósofo Michel Foucault, em sua Microfísica do poder, vê a história pelo viés da “ordem do discurso”, da “genealogia do poder”: o poder de uma época é coberto por uma camada que instaura um novo poder…). Assim, na “ordem do discurso”, do poder, as “questões” de hoje, com respeito à mulher, ao feminino, ao feminismo, não são as mesmas do momento em que Jeanne Dielman foi feito: “o poder precisa da produção de discursos de verdade”. Quando Akerman filmou, o sentido das “questões” era outro, ou havia uma outra maneira de se as tratar. Por isso, por envolver a mulher, o feminino, o feminismo, não creio ser o caso de deixar de lado que quem fez O Triunfo da Vontade (1935) não diga algo sobre a presença (o poder) da mulher no cinema sob o nazismo. Consideremos a importância histórica com Leni Riefenstahl realizando a “maior” obra cinematográfica do III Reich (em 2014, a Sight and Sound colocou O Triunfo da Vontade entre os 50 “maiores” documentários da história; de modo preciso, na 47ª posição).

    Chantal Akerman (1950 – 2015)

    A bandeira do feminino, do feminismo, carrega perigos inesperados; assim como reclama urgência tremular no campo da política, nas esferas do poder. Daí, entendo, a importância da eleição do filme de Akerman no que, justamente, lhe é externo: uma bandeira para o feminino, o feminismo, num momento em que essa bandeira se faz necessária, independente de armadilhas internas que o filme possa conter (para ficarmos no mundo grego, lembremos do mito de Pandora, a fonte de desgraças para os homens; há algo de Pandora em Jeanne Dielman, portanto de inevitável julgamento moral: o que Dielman, a personagem, afirma sobre o que a mulher simboliza na ordem machista?).

    Chantal Akerman e seu cinema se inserem num mundo, sob tantos aspectos no que concerne à representação da mulher, do feminino, do feminismo, diverso do de hoje. Sua obra com isso, considerada como gesto político, ou de poder, assumiu outra feição quando concebida (toda obra escapa a intenções manifestas ou não manifestas, pois se expõe a interpretações diversas ao desejo do autor). Por conseguinte, um alcance, uma ressonância não tidas no contexto da década de 1970. Nuances de momento não são meros artifícios, rodeios retóricos. Para O Encouraçado Potemkin (1925), de Sergei Eisenstein, novos olhares e crivos de julgamento se formam no movimento da história. A bandeia do comunismo e um filme como emblema têm hoje outra sinaleira.

    Trinh T. Minh-ha explora a questão feminina através de uma abordagem documental, alternando entre momentos expositivos e poéticos.

    A importância hoje dada a Chantal Akerman faz pensar em escavar o passado, um tanto foucaultianamente. Quais outras cineastas mereceriam destaque? Quais outras cineastas circularam, um tanto quanto despercebidas como Akerman, cujas obras esperam um tempo, na “ordem do discurso”, para se fazerem ver com olhares atentos? Trinh T. Minh-ha, diretora “norte-americana” nascida no Vietnã, contemporânea de Akerman, situando-a igualmente no âmbito do feminino, do feminismo, nos dias hodiernos exige atenção que, ainda, não teve (grosso modo, sua visibilidade praticamente se restringe a debates acadêmicos e Mostras despercebidas do mass media).

    Melhor: razões exógenas, que atualmente fazem Akerman pontificar, podem ser igualmente encontradas em Trinh T. Minh-ha. Em sua obra, marcadamente documental, a condição da mulher, do feminino, do feminismo, é uma bandeira que se ergue. O que me parece relevante é a necessidade de situá-la num contexto em que a representatividade, o caráter simbólico, o poder da mulher, do feminino, do feminismo se impõem (sem esquecer, por óbvio, que levantar uma bandeira implica em perigos inesperados).

    Um dado a se destacar como ponto de partida. Independente, alheia ao jogo do mercado, a esquemas de produção que envolvem interessas comerciais, Trinh optou pelo documentário. Nele, adota opções peculiares com respeito às convenções “clássicas”, o chamado “modo expositivo”, conforme taxonomia estabelecida por Bill Nichols. E, seguindo o mesmo Nichols, Trinh se coloca no rol de cineastas dos “modos reflexivo e poético” (documentário ensaio). Sua obra fílmico-documental, realizada em momentos esparsos, na verdade complementa os diversos caminhos de seu trajeto artístico e intelectual: pianista, compositora, professora universitária, escritora e teórica de literatura, o cinema é, também, um de seus canais de expressão (ela concentra suas diversas atividades em torno dos temas da interação transcultural, da transição e da percepção da diferença no cruzamento entre tecnologia e colonização).

    “Reagrupamento” (1982): “falar ao lado do Senegal e não sobre”.

    Assim, ela realizou Reagrupamento (1982), Espaços descobertos: viver é circular (1985), Sobrenome Viet nome próprio Nam (1989), Mire o conteúdo (1992), A quarta dimensão (2001), e mais recentemente Esquecendo o Vietnã (2015). Neles, uma exigência que, com a mulher em foco, se coloca: em vez de ver o mundo por meio de um documentário – uma produção que “falaria sobre o outro” –, com o documentário ela busca refletir como o mundo é representado e o que está sendo representado (a representação, explicitada, falseia a objetividade do que é visto). Com essa pressuposição, seus filmes visam, tanto no plano formal como temático, a representação do outro, e não propriamente a “verdade objetiva” sobre esse outro numa escala verticalizada, numa posição superior. Em resumo, seus filmes tencionam superar os sistemas de oposição binária – sujeito/objeto, eu/ele, nós/eles –, que asseguram uma posição de dominação para aquele que fala; com isso, visa essencialmente por em xeque o lugar de discursos de autoridade; em decorrência, tencionar relações de poder.

    Filmado no Senegal, seu primeiro filme de destaque é o média-metragem Reagrupamento, concebido em 16 mm. Nele, o mote que dominará sua obra, expresso pela voz-over de Trinh T. Minh-ha nas “cenas” iniciais: “falar ao lado do Senegal e não sobre”. Mais adiante, novamente a voz-over: “em numerosos contos a mulher se apresenta como quem possui o fogo; só ela sabe como fazer o fogo…”. As imagens, contudo, mostram o fogo produzido por forças da natureza, enquanto as mulheres no Senegal têm uma vida exaustiva, cuidam das crianças pequenas e preparam a comida. Mas, justamente, para enfatizar a simbolismo do fogo e o poder da mulher: a panela é posta por ela no fogo – no alimento e no fogo as condições de sobrevivência.

    A voz-over volta a indagar: “amigos me perguntam: o filme é sobre o quê?”. Após uma pausa silenciosa, a resposta: “é um filme sobre o Senegal, mas o quê no Senegal?” O filme segue um ritmo no qual às imagens, sem raccord, se contrapõem alternadamente silêncios e, na banda sonora, gritos, assovios, sons de cigarras, de tambores, cantos, murmúrios e a voz-over, com perguntas e afirmações que sugerem novas interrogações e locuções por vezes evasivas, hesitantes. Na voz-over, por sua vez, nenhum comentário, nenhuma tentativa de relacionar imagem e o sentido da fala, mas sim um profundo questionamento sobre a objetividade científica de etnólogos e o comportamento de turistas que se aventuram para conhecer o “exótico”. A esse respeito, a própria voz-over exibe a inconveniência de sua condição em meio às filmagens.

    Com respeito às imagens, Reagrupamento opta pela descontinuidade, pela opacidade na montagem, pela utilização de planos curtos, enquadramentos oblíquos, trepidantes e frequentes jump cuts. Com isso, o filme se mostra como uma construção, um ensaio, portanto com um ponto de vista que se explicita pela rejeição a convenções do documentário clássico, que filma o outro numa posição verticalizada, e assim projeta a ilusão de que falaria sobre um outro “exótico” aos olhos de uma cultura dominante. O alvo mais notável é Nanook, o esquimó (1922), de Robert Flaherthy. As influências mais destacáveis, por seu turno, são Carta para Jane (1972), de Jean-Luc Godard, realizado à época do Grupo Dziga Vertov, e, no que se refere à composição visual, Tramas do Entardecer (1943), de Maya Deren.

    “Espaços descobertos: viver é circular” (1985) articula as vozes femininas do Senegal, Mauritânia, Togo, Mali, Benin e Burkina Faso, revelando complexidades que não se concatenam.

    Após essa primeira experiência com um média-metragem em 16 mm no Senegal Trinh parte para um projeto mais ambicioso do ponto de vista da produção. Espaços descobertos: viver é circular. O espaço, como dado no próprio título, se amplia. Nele Trinh percorre habitações rurais no Senegal, Mauritânia, Togo, Mali, Benin e Burkina Fasso. Com pouco mais de duas horas de duração, Espaços descobertos, faz uso alternado de três vozes-overs femininas (Trinh T. Minh-ha, Barbara Christian e Linda Peckham). Por meio delas, o acento na complexidade das traduções. Assim sendo, a fala dessas três mulheres é discursiva, truncada, ressignificada e flutuante. Expressam pontos de vista que não se concatenam. Às vozes das três, Trinh dá ênfase, ainda, aos sons de diferentes dialetos nas vozes de mulheres (cantos rituais, murmúrios, lamentos) por onde filma. Com isso, ela mapeia as subjetividades além das fronteiras de identidade por intermédio de vozes das várias habitações percorridas por sua câmara (não seria descabido apontar que, sobre a banda sonora e a concepção visual, há certa dívida com o Glauber de O dragão da maldade contra o Santo guerreiro (1969) e O leão de 7 cabeças (1970)). Espaços descobertos nega o ato de tradução e, ao mesmo tempo, critica a visão homogênea segundo a qual os povos do Terceiro Mundo são indiferenciados: a palavra “África” cobre centenas e centenas de etnias. A noção de continente, de Estado nacional, é praticamente nada, signo codificado além África.

    O filme de Trinh T. Minh-ha, de qualquer forma, que mais põe em “cena” o feminino, o feminismo, é Sobrenome Viet nome próprio Nam. Trinh trata da mulher no Vietnã. O foco é o olhar de mulheres vietnamitas antes e pós-guerra do Vietnã. A primeira coisa a ser destacada é justamente o título: Viet pode ser traduzido como nome de país e Nam como homem, masculino, macho. Ou seja, o título traduz algo assim: o sobrenome do país cujo nome batismo é macho – País Macho, enfim… Com o título, um jogo de palavras que indica o contrário do que significa, pois quem fala é a mulher. Ora, Trinh T. Minh-ha apresenta mulheres cuja condição de ser mulher no Vietnã, no contexto pós-guerra, expressa dor e solidão e manifesta a necessidade de voz própria e “empoderamento”, para fazer uso de um neologismo recente. A guerra e o pós-guerra do Vietnã em Sobrenome Viet… é apresentado da perspectiva de mulheres que viveram antes e depois, e assim contam suas dificuldades e luta pela sobrevivência.

    “Sobrenome Viet nome próprio Nam” (1989): o feminismo de forma mais direta.

    Assim apresentado, teríamos mais um documentário “sobre” o Vietnã. Mas Sobrenome Viet… não é um documentário “normal” – conquanto o termo “normal” suscite controvérsia, aqui tem o sentido dado por Bill Nichols, ao comentar, justamente, esse filme de Trinh. E essa “anormalidade” se evidencia quando se tem em vista que os depoimentos das mulheres vietnamitas foram colhidos do livro Vietmam, un peuple, des voix (1983), da também vietnamita Thu Van Mai. Trinh T. Minh-ha escalou atrizes vietnamitas exiladas nos Estados para os depoimentos do filme. No transcorrer de Sobrenome Viet…, Trinh revela que as mulheres que vemos no filme na verdade vivem nos Estados Unidos e ensaiaram os depoimentos com textos a serem apresentados. No jogo entre representação e realidade vivida, o acento nos limites sobre o que um documentário relevaria, de fato, objetivamente, sobre a condição da mulher no Vietnã.

    Na encenação de falas previamente estabelecidas, uma notável ruptura com expectativas de “verdade” no que é dito; ou, precisamente, sentido: na representação, a experiência do outro, mesmo esse outro sendo também vietnamita. Mas, como abarcar o que o outro efetivamente sentiu quando o que se exibe é imitação, mimese? Na encenação, assim, um jogo com implicações complexas: Platão apontaria para o problema da verdade, Aristóteles recorreria à catarse, mas esta não aplica a Sobrenome Viet… O perigoso gesto que consiste em erguer bandeiras. As mulheres que falam em Sobrenome Viet… não são as mulheres que viveram as situações que relatam. A encenação traz, assim, a impossibilidade de dizer sobre a condição da mulher no Vietnã? A ilusão, a mimese, na projeção do que elas falam pode também significar o falseamento dos relatos? O foco no feminino, no feminismo, evidencia uma condição de fragilidade em vez de “empoderamento”?

    “Sobrenome Viet nome próprio Nam” (1989) evidencia como a condição das mulheres permanece a mesma, independentemente do sistema político em questão.

    Com a palavra “vitimização” uma das armadilhas a que se expõe Sobrenome Viet…, pois, no campo político, do poder, efetivamente a condição da mulher sob o capitalismo e o comunismo é a mesma. Os relatos, assim me parecem, denotam. Em decorrência, subliminarmente o dilema entre um mundo ideal sem tensões, uma utopia, e uma situação de luta eterna, sem fim. Voltando aos gregos: na mulher, no feminino, no feminismo, o incômodo mito de Sísifo (em Jeanne Dielman, a incômoda Pandora): erguer a pedra até o topo, vê-la cair e voltar a erguê-la por toda eternidade. Para Albert Camus, numa interpretação existencialista do mito, esse o absurdo da condição humana. Em Sobrenome Viet…, como filmado por Trinh T. Minh-ha, esse o absurdo da condição da mulher.

    Mais Recentes

    Publicidade

    Publicidade