Capitu e O Capítulo
Capitu, o capítulo e a cópia
Por Humberto Silva | 25.07.2023 (terça-feira)
Dom Casmurro é o mais cultuado romance da literatura brasileira. Júlio Bressane é um dos maiores cineastas do cinema brasileiro.
Irreverente inventivo ousado, próximo aos irmãos Campos e à poesia concreta, Bressane até onde vislumbro é o realizador de cinema que mais busca diálogo original com a literatura: Lima Barreto, João do Rio, Oswald de Andrade, Padre Antônio Vieira passeiam em seus filmes.
Nessas andanças, Machado de Assis ocupa lugar especial com Brás Cubas e suas memórias, contos O espelho e Causa secreta, e mais recentemente o casmurro Bento Santiago.
O título do filme, Capitu e o capítulo, menciona Bressane, refere-se a poema homenagem escrito, justamente, por Haroldo de Campos. Assevera Bressane que para Haroldo em Dom Casmurro o mais importante não é Capitu e sim o capítulo.
(a forma, pois, fragmentada da narrativa do romance, capítulos curtíssimos, e o corte, a montagem cinematográfica, antes do assunto).
Nos créditos finais da película bressaniana, importante: “Extraído de Dom Casmurro”.
O espectador atento à obra de Bressane, por óbvio, não se decepcionaria nem se surpreenderia com a irreverente “adaptação”. Extraído de Dom Casmurro chega a ser impostura: “vou dizer que vou dizer…; e nesse dizer que vou dizer, não digo” (quando se lê “extraído”, entenda-se: pista falsa).
O irreverente inventivo Bressane, terminado os créditos, exibe tomadas dele, no set, orientando as filmagens. Metalinguagem.
O espectador atento à obra bressaniana aguarda inventividade. Os ademanes dele e algo assim: “isso não é narcisismo” (quando se vê Bressane em cena, entenda-se: pista falsa).
É sob o signo do falseamento que assisti a Capitu e o capítulo. Na cena final, enquadramento fechado e oblíquo em papéis espalhados sobre uma mesa e num deles uma assinatura: Machado de Assis.
Seriam tais papéis, um dos quais com a assinatura, escritos pelo escritor?
Os créditos não indicam e nada impediria Bressane de acessar na ABL os originais de Machado.
O que importa para mim, espectador, é o jogo que Bressane propõe com o falseamento. Sendo os papéis originais, a fita não dá certeza; não os sendo, lúdica com minha credulidade, a de espectador.
O espectador, atento à obra de Bressane, saca o jogo lúdico: the caucus race, “extraído” de Alice no país das maravilhas, uma corrida cuja regra é não haver regras e todos que dela participam são vencedores.
Nos créditos finais, a impostura de Bressane não seria menor se lêssemos: “Extraído da obra de Lewis Carroll”: Bentinho, conduzido pelo inocente coelho, se afunda em sua toca profunda.
Nessa perversão com as etiquetas, em Machado quem escreve é o melancólico e ressentido Bento de Albuquerque Santiago em idade provecta, próximo dos sessenta, ao passar um “filme” por sua vida – a relação obsessiva com Maria Capitolina de Pádua Santiago, o amigo Ezequiel de Sousa Escobar, a suspeita de adultério, Sancha, amiga de Capitu, o “filho” de Bentinho e Capitu… e apenas ele, Bento Santiago, sobrevive para relatar o que os envolveu.
Nessa perversão com as etiquetas, na fita de Bressane a assinatura de Machado o separa de Bento Santiago, sua criação ficcional e narrador de sua infortuna; no filme Capitu e o capítulo não há o quase sexagenário Bentinho passando um “filme” por sua vida, mas Machado de Assis, o escritor, monologando sobre o mundo das letras, sobre os grandes poetas do romantismo brasileiro…. (a alusão ao maranhense Antônio Joaquim Franco de Sá, que morreu com vinte anos me impressionou).
Na perversão com as etiquetas, possível alerta: o ciúme, o adultério, o filho bastardo são tão reais quanto o exercício de metalinguagem depois dos créditos (quando assim se percebe, entenda-se: todas as pistas são falsas – num caso e n’outro, encenação).
Irreverente inventivo, na sala em que os personagens encenam, na parede uma cópia em grande dimensão do afresco A poetisa, pintura romana encontrada em Pompéia, sem assinatura do (da) artista, e que se acredita representar Safo.
Bressane faz um close nos olhos da poetisa (Safo? Tão certo quanto a assinatura machadiana); e, nos olhos dela, os de Capitu: oblíquos e dissimulados. A arte se oferece a devaneios assim. Bressane bem sabe disso, como pode igualmente saber o espectador, atento à sua obra. Sem um tico de impostura, a arte se explicaria como no silogismo: premissa maior, premissa menor e a conclusão que se segue, necessariamente, das premissas.
Capitu e o capítulo é um filme… o quase nonagenário Júlio Bressane, e seu mais que conhecido trajeto no mundo do cinema, o deixa livre para concebê-lo como ele o concebeu. Cabe ao espectador a devida atenção para extrair o que, não impossível, nem de longe passou pela fértil imaginação de seu realizador.
Mais um Bressane, plenamente reconhecido pelo espectador atento como um legítimo Bressane. Assim, como o afresco romano encontrado em Pompéia, careceria da assinatura Bressane nos créditos finais.
Então, a não ser como impostura, aceito de bom grado ler: “Capitu e o capítulo, diretor: Júlio Bressane; produtoras: Globo Filmes, Pandora Filmes, TB Films, ANCINE/FSA”.
O poeta é um fingidor; finge tão completamente…
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