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Críticas

Fogo-fátuo

João Pedro Rodrigues narra um pequeno conto profano sobre o amor entre classes irreconciliáveis.

Por Yuri Lins | 20.07.2023 (quinta-feira)

No ano de 2069, um rei desacordado aguarda a morte deitado em sua cama  real. Uma pintura com pessoas negras ao fundo, resquícios do espólio colonial parecem velar o destino derradeiro do monarca. Ao lado do seu leito, uma criança brinca despreocupadamente e ignora qualquer solenidade, quer seja da nobreza, quer seja da morte. De repente, não mais que de repente, um sonoríssimo peido ressoa através da antecâmara da morte. O rei ainda reina e o peido, não sendo o seu último suspiro, reanima-o para rememorar os seus verdes anos antes do fim.

Em um flashback para os dias atuais, tempos de coronavírus e de crise climática, o  futuro rei Alfredo (Mauro Costa), inconformado com os rumos do mundo, abandona sua vida na aristocracia para se juntar ao corpo de bombeiros, onde ele poderá ser útil apagando os incêndios do apocalipse que se avizinha. Ao descer ao mundo da plebe, o príncipe descobre a potência de seus sentidos e acaba por  encontrar o amor em Afonso (André Cabral), um de seus companheiros de batalhão.

Cantando e dançando, o amor e o desejo se entrelaçam.

É essa pequena fábula de reis e súditos, de desejo e de morte, que o realizador português João Pedro Rodrigues cria, em Fogo-fátuo (Port., 2022), seu novo longa-metragem. Em pouco mais de 60 minutos de duração, o filme constrói um mundo camp excelência: exagerado, artificioso, com um humor corrosivo e que manda às favas qualquer realismo acachapante. Um mundo onde os sentimentos mais intensos são esgarçados no canto e na dança de um musical que encontra luxo no pauperismo de seus meios de produção. 

Se o camp é a sensibilidade que rompe os limites entre a baixa e a alta cultura, que permite a coexistência da grande arte com os gostos estigmatizados, é esse o processo que surge a partir da abdicação do príncipe Alfredo. Ele abandona os salões repletos dos despojos históricos pilhados pelos seus antepassados da nobreza e encontra o seu lugar no banheirão dos bombeiros, onde homens nus recriam quadros icônicos da história da arte sob as névoas do chuveiro e do suor de seus corpos. É precisamente nesse ambiente que artistas como Caravaggio ou Rubens parecem encontrar sua verdadeira vocação: profanados dos salões da realeza e restituídos em seus lugares de direito e destino junto ao povo.

A grande arte, mesmo tomada pelos nobres, renasce nos corpos da plebe

E sobre o que fala Fogo-fátuo? De encontros tão profundos que são capazes de suspender os lugares sociais de seus indivíduos; de resguardá-los em uma dimensão fantástica constituída pela matéria do desejo, ainda que por um breve instante e sempre em constante risco de desaparecer. Alfredo, nobre descendente colonial, e Afonso, homem negro plebeu. Mundos irreconciliáveis que se entregam à fabulação plena impulsionados pelo magnetismo de seus corpos e por uma crença radical na eternidade. 

Ainda que Fogo-fátuo seja um epítome da estética camp, com suas excentricidades e afrontas, é interessante notar que é  na representação realista de uma floresta calcinada que ele encontra sua imagem mais justa. É nesse cenário de destruição, um índice de uma aniquilação porvir, que Afonso e Alfredo têm sua primeira transa, entregando-se completamente ao amor e transcendendo as barreiras que os separam. No instante em que se entrelaçam sobre as cinzas, eles acabam por dobrar a esterilidade do solo em um palco de um novo mundo possível.

Sob o solo estéril, o amor semeia possibilidades de novos mundos.

Entretanto, a vida impõe sua dureza. Após a morte do pai, Alfredo é obrigado a assumir o posto de rei. Resta apenas uma despedida entre ele e Afonso em uma noite iluminada pela Lua. Volta-se ao futuro e o rei está morto. Como uma última profanação, os bombeiros erguem seu corpo em uma cena reminiscente de uma Pietà, onde o capacete da classe é transfigurado em uma coroa e posta sobre a sua cabeça, afirmando o lugar de Alfredo não entre a nobreza, mas sim entre aqueles que pisam no chão comum.

Durante o grandioso velório, uma figura encapuzada tem apenas um breve instante para contemplar seu luto antes que seja exigido que ele revele seu rosto. Para surpresa de todos, é Afonso, agora o presidente do Portugal de 2069, sendo aclamado como tal. Sob o capuz, por breves momentos, Afonso pôde ser o homem que verdadeiramente vive abaixo de sua posição, o mesmo homem que amou um príncipe e que por ele foi amado. O anonimato proporcionado pelo capuz e a paisagem apocalíptica de uma floresta queimada se tornam os únicos lugares onde se pode viver de verdade, sob a paz de um segredo.

 

[Nota do editor: Fogo-fátuo estreia nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira (20), com sessões incluindo o curta-metragem Fantasma neon, de Leonardo Martinelli]

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