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Críticas

Por Trás da Linha de Escudos (2017-2023)

A revisão crítica de Marcelo Pedroso

Por Ivonete Pinto | 03.07.2023 (segunda-feira)

A possibilidade de rever posicionamentos tem sido privilégio da escrita. Quantos livros foram reescritos para suas novas edições? Principalmente, quantas introduções e notas de rodapé foram atualizadas pelos seus autores porque já não condiziam mais com o que eles pensavam? Pois a oportunidade, com o barateamento dos meios de produção, surge também para cineastas que sentem necessidade de voltar a um filme para dizer que pensam diferente. Para afirmar que foram surpreendidos pelos fatos, e mesmo que se arrependem de certas atitudes, seja na história, seja em certos procedimentos de um filme, em especial quando se trata de um documentário. É mais ou menos isto que faz Marcelo Pedroso em Por trás da linha dos escudos.

Em 2017 Pedroso lançou nos festivais de Brasília e Cachoeira um documentário com o mesmo título. Na versão de 2023,  informa que diante das críticas resolveu não lançar o filme e desde então trabalha uma atualização/revisão. A nova montagem mantém o contexto, que mostrava a atuação do Movimento Ocupe Estelita, no Recife,  e a repressão da Polícia Militar de Pernambuco. Pedroso, que era militante do movimento em torno de uma reintegração de posse, questiona o caráter militar da polícia e o grau de violência empregado, com táticas de guerra, contra uma população pobre e não-branca. Os batalhões de choque foram criados dentro da PM justamente para este fim. Claro está que o tema soa atemporal, que a função de forças policiais e militares sempre pode ser problematizado, não importa para qual governo respondam. Por isto, o filme ganha uma abrangência que o valoriza.

CHOQUE, criado para operar usando tática de guerra

2005-2010-2013… – Nas primeiras cenas do documentário  Pedroso lembra de um protesto  de 2005 por conta do aumento de 15 centavos nas passagens de ônibus, onde ele próprio era um dos manifestantes.  Mais adiante, tecendo uma rede de acontecimentos, insere imagens do impeachment da presidente Dilma Roussef em 2016. Nós, espectadores, partícipes ou não dos eventos, podemos acrescentar  nesta rede o fatídico ano de 2013 e as passeatas originadas por aumentos irrisórios de passagens, que se desdobraram em outras demandas. No cenário internacional,  teve início em 2010 a Primavera Árabe, que eclodiu na Tunísia e se alastrou nos anos seguintes  pelo Egito,  Turquia,  Líbia,  Marrocos,  Jordânia e Síria, com reivindicações por liberdade e com resultados desiguais. Na Síria, foi catastrófica, não só mantendo o ditador Bashar al-Assad no poder, como fortalecendo o Estado Islâmico e matando milhares de sírios em uma guerra civil que dura até hoje.

No Brasil, poderíamos  dizer que o 2013 teve resultado catastrófico também, não com a mesma  dimensão.  As nossas ingênuas passeatas de 2013, quem diria, fizeram surgir o abjeto MBL, o Fora Temer e o Inelegível.  E  se incluirmos as evitáveis  mortes pela Covid-19 e a renovação do fascismo, só temos a lamentar.

Mas se o ponto de partida de Marcelo Pedroso é 2005, em episódio  localizado, seu foco pode ser estendido. Ele quer discutir, repensando e criticando, o papel das forças policiais no enfretamento de revoltas populares. Na sua delimitação de tema, o diretor tenta entender os policiais que passaram a atuar em batalhões de choque para dispersar multidões. Cobra deles empatia pelas causas dos revoltosos.

O diretor, na interação com os policiais (acompanha a rotina de treinamentos, assiste palestras, realiza entrevistas), esforça-se por “baixar a guarda” como estratégia para ganhar confiança. Porém, deixa claro para o espectador de que lado está. Afinal, ele é o dono do dispositivo,  à frente da montagem e da narração (montagem divida com Ernesto de Carvalho). Para os policiais, ele era apenas um cineasta empenhando-se para mostrar “o lado deles”, numa atitude rara que eles queriam apenas aproveitar. Não é todos os dias que o Cinema se dispõe a ouvi-los, ainda mais em um longa! Assim, foram gentis e articulados na defesa de seus métodos, dentro das suas limitações.

Algumas entrevistas renderam mais e suscitam maiores elucubrações, como a com um coronel da PM questionado sobre “justiça”. Ao deslizar nas respostas, o diretor insiste e ouve do coronel que “não cabe a gente questionar a justiça, a gente trabalha em cima da norma”, mesmo que ela seja injusta. A ideia é restituir a ordem, custe o que custar, diz o entrevistado, numa fala absolutamente previsível.

Fosse um Michael Moore, Pedroso colocaria seus personagens na parede, sem dó nem piedade, muito menos sutileza. Pedroso segura o ímpeto e, na revisão de seu filme, não chega a acrescentar nada que faça mudar uma constatação: policiais, civis ou militares, comandantes ou comandados, nunca diriam para uma câmera que estão arrependidos por agir com força extremada. A violência de que lançam mão é tida por eles como “reação” e, mais importante, agem em nome do Estado que, no limite, existe para proteger os cidadãos (obviamente, o interesse das grandes empresas vem antes, mas é subterrâneo e cuja evidência não alcança a todos).

Nesta lógica, como Pedroso imaginava que um policial responderia? Achava  que  confessariam que são sádicos aproveitando a oportunidade do emprego para exercer sua patologia escondendo-se atrás de escudos?  Que são coitados, marionetes na mão de um Estado repressor por natureza? Nisto, vai uma nítida impressão, a de que a ingenuidade não deixaria Pedroso  ir além no filme de 2017, nem na versão de 2023.

Como peça de reflexão, Pedroso não mira na filosofia, o que fragiliza o resultado final. Isto não quer dizer que não estejamos diante de um documentário importante, que se assiste com interesse, como  o icônico Pacific (2009, ver  troca de mensagens entre Pedroso e Jean-Claude Bernardet na revista Teorema #18, disponível no Academia.edu) e o irônico Brasil S/A (2014, ver nosso texto na Teorema #25 , disponível no Academia-edu).

O mérito maior de Por trás da linha dos escudos, afora investir novamente na voz do outro, talvez esteja em provocar que os espectadores construam suas próprias especulações, por exemplo, em direção à Inteligência Artificial. O que será das forças policiais – e das populações – quando as batalhas forem comandadas por decisões da IA? O que será quando tropas como as do grupo Wagner, da Rússia, forem legitimadas no Brasil, ou seja, quando milicianos agirem a soldo e em nome do Estado?

Jean-Marie Straub-Danièle Huillet, Harun Farocki, Chris Marker e Jean-Luc Godard nos deram filmes-ensaio comentando  imagens suas ou de outros e que servem de inspiração. Pedroso  também faz este exercício, e neste sentido Por trás da linha de escudos é instigante, mesmo deixando de ir  fundo nas reflexões sobre o poder e a simetria com a violência. A propósito, sobre a violência em nome do Estado, ela abarca tanto um país como a França (veja-se o recente episódio do argelino de 17 anos morto por um policial), como o Brasil. São casos em que a genealogia do mal está nas questões raciais, antes das de classe.

Durante a exibição de Por trás da linha de escudos no 50º Festival de Brasília (2017), o CinemaEscrito publicou duas críticas sobre o filme. Confira:

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