47ª MostraSP (2023): Anatomia de Uma Queda
Autópsia de um casamento
Por Ivonete Pinto | 18.10.2023 (quarta-feira)
— “Anatomia de uma Queda” abre a 47ª edição da Mostra Internacional de Cinema em São Paulo nesta quarta-feira (18), no Espaço Petrobras, na Cinemateca Brasileira, em sessão e cerimônia para convidados.
Há filmes que permanecem por muito mais tempo depois de sua projeção. Há filmes que nos deixam pensando, pensando e pensando sobre o conteúdo de seus diálogos e a forma como são ditos. Este é o caso do soberbo Anatomia de uma queda (Anatomie d’une chute, 2023), ganhador da Palma de Ouro da última edição de Cannes. Dirigido por Justine Triet (a terceira mulher na história a ganhar o festival, nunca é demais lembrar), pode até não encontrar unanimidade entre seus espectadores, pois há quem rejeite, a priori, títulos relacionados ao cinema de gênero, afinal, ele é um drama de tribunal durante boa parte do tempo. Mas esta seria uma redução simplória, porque aos poucos, e sem que se perceba claramente um corte na linha narrativa, Anatomia de uma queda vai se transformando em um drama bergmaniano. Um drama – que também não deixa de ser gênero – que adentra a alma humana, com suas inúmeras fragilidades e conflitos. O traço tribunal/policial está ali, contudo não fica só ali. Sugere-se atenção ao título: não se trata da anatomia de um crime, mas de uma queda.
[contém leves spoilers] O enredo desta produção francesa é quase minimalista: uma escritora (Sandra Voyter/Sandra Hüller) está dando uma entrevista para uma estudante em sua casa, quando uma música que vai aumentando de volume torna a entrevista inviável. A escritora remarca a entrevista para outro dia, em outro lugar. Ambas estão constrangidas com a situação, passam-se algumas horas (quantas?) e o marido da escritora (Samuel Maleski/Samuel Theis) aparece morto na neve em frente à casa, após ter caído de um dos andares. Foi jogado?
Então se desenrolam os meandros típicos de um filme de tribunal, com promotor de acusação e advogados de defesa cercando todos os ângulos, e revelando descobertas sobre o relacionamento do casal. O filho deles (Daniel/Milo Machado Graner), um garoto quase cego em função de um acidente de carro (a culpa é forte ingrediente da trama), ouve muito bem, porém seu testemunho pode ser questionado.
Estes são, basicamente, os elementos mais concretos da história. Aos poucos somos levados às dimensões mais sinuosas da relação do casal. Ele também é um escritor, só que frustrado, não consegue produzir, não consegue editor que se convença com seus esboços literários. Ela é renomada por criar ficção a partir de sua própria vida, exercendo direto a autoficção (detalhe que a torna imediatamente suspeita, já que pretenderia/pretende escrever um romance a respeito). Ele se sente inferior e infeliz por ter que dar aulas para ter rendimentos. Vivem num amplo chalé nos Alpes franceses. Ele é francês, ela é alemã e conversam em uma terceira língua, o inglês, a partir de um acordo estabelecido para ficar “no meio” de uma cultura e outra. Nas cenas do julgamento, este aspecto rende ótimos desdobramentos.
No sentido da estrutura de produção, não chega a ser um filme transnacional, já que só a França aparece como produtora, entretanto é uma alemã que faz toda a diferença: Sandra Hüller (nove em cada 10 textos sobre ela fazem referência a Toni Erdmann, Maren Ade, 2016). Sua nacionalidade é algo orgânico no filme, justamente porque um dos motivos do conflito do casal é a questão cultural da língua, de como se comunicam e como definiram que também falariam em inglês com o filho.
A escolha pela atriz Sandra Hüller mereceria um artigo à parte, para dar conta de quanto é impressionante como ela transcende os limites da interpretação. Econômica nos gestos e expressões faciais, graças a generosos closes temos uma miríade de sentimentos e possibilidades, muitas vezes contraditórios, que sugerem dúvida. E a dúvida sobre sua inocência é combustível importante, embora não o mais importante. Por isto, insistimos que não se trata de um filme de tribunal apenas (o que já seria suficiente). Quem assistiu a Cenas de um casamento (1974), de Ingmar Bergman, sabe o quanto as brigas de um casal podem explorar os mais profundos escaninhos da psique humana. Aliás, boa parte da obra de Bergman faz isto (Dostoievski sendo a pedra fundamental). E neste filme icônico, o título original em sueco é “Cenas de um ato”, não de um casamento. E o marido é quem trai a esposa.
Não é de hoje que cineastas tentam filiação à obra de Bergman. Desde Woody Allen com seu Maridos e esposas (Husbands and wives, 1992), passando por Noah Baumbach com História de um Casamento (Marriage Story, 2019), até a francesa Mia Hansen-Løve, que o fez de modo direto com A ilha de Bergman (Bergman Island, 2021), rodado no local de alguns dos filmes do diretor sueco, a ilha de Faro. Nele, um casal se desnuda, entra em duelo para resolver suas diferenças. Entretanto, não há um crime, nem os subtemas do filme de Justine Triet. Por sinal, ela avança corajosamente na exposição dos conflitos, embrenhando-se na intimidade do casal. Uma longa sequência, onde o marido reclama de como a esposa se comporta na cama, ilustra como ele se sente diminuído em relação a ela.
Bissexualidade explorada – A opção do roteiro (Justine Triet e Arthur Harari) ao incluir no perfil da personagem a informação de que é bissexual, é um dos itens que nos leva a conjecturas, nem tão a favor do filme, visto que soa como clichê. Seria mesmo necessário? O que significa? Ser bissexual a torna mais forte em relação ao marido vulnerável e atormentado? É um recurso dramatúrgico para ela ser duplamente julgada no processo? O figurino (Isabelle Pannetier), da mesma forma, reitera um lado masculino prático e determinado da escritora. Estereótipo ou não, de qualquer maneira é uma nuance a mais num filme pleno de matizes. A montagem (Laurent Sénéchal), por sua vez, contribui para deixar no ar certos aclaramentos. Como a primeira vez em que um flerte entre o advogado e a cliente se esgueira e temos um corte um tanto brusco, não nos permitindo saber se o flerte evoluiu.
Enfim, Anatomia de uma queda sonda as diversas possibilidades para a morte ter acontecido, investigando uma queda que é também metafórica. Faz isto através de imagens e de diálogos precisos, agudos e, ao mesmo, coloquiais (nada é por acaso, a produção contou com o trabalho de uma profissional dialoguista, Dany Héricourt). Igualmente é pelos diálogos de alto realismo, que Justine Triet realizou A batalha de Solferino (La bataille de Solférino, 2013). Ali, também temos um casal deparado com um conflito de consciência, no caso, o desaparecimento da filha em meio a uma festa popular. A culpa que conflagra outras questões familiares, sexistas inclusive.
Talvez a reação tão encantada ao mais recente filme de Triet seja exagerada. É preciso dar tempo para que ele permaneça relevante para o cinema. Desde Cannes temos indicativos de que conquistará muitos prêmios anuais por aí (especialmente Sandra Hüller). Sua estatura, no entanto, deverá passar por revisão. Por enquanto, vê-lo resulta em uma experiência muito acima de expectativas, pois o filme é muito acima da média. E suas duas horas e meia passam voando, como uma queda.
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