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Festivais

47ª Mostra SP (’23) – ‘Criatura’ e ‘O Sequestro’

A complexidade do sexo e do amor feminino e um recado sobre a ditadura.

Por Luiz Joaquim | 22.10.2023 (domingo)

— Na imagem em destaque, está Elena Martín Gimeno, que atua como diretora e protagonista em ‘Criatura’.

SÃO PAULO (SP) – Dá para contar nos dedos filmes que tratam a complexidade do sexo (principalmente o feminino) com a integridade, leveza e a profundidade cinematográfica que o tema merece. E isso é fácil de explicar. Ao longo da história, a maioria dos cineastas são realizadores, não realizadoras. Mas isso está mudando, e se há um país que vem dando ótimos exemplos sobre a questão é a Espanha (além da França, claro). Vejam, por exemplo, o cinema de Isabel Coixet.

E, felizmente, novos nomes surgem dando conta desse campo com competência e graciosidade. Um deles é o de Elena Martin Gimeno que apresenta aqui na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo o seu Criatura (Creatura, 2023), escrito e protagonizado pela própria diretora.

Ela vive Mila, uma designer e escritora passando temporada com o namorado na casa litorânea após o falecimento da avó materna. 

A volta ao local – endereço constante dos veraneios na infância e adolescência, também vinculado às primeiras descobertas sexuais -, ela sofre uma reação cutânea, com erupções na pele e, particularmente, na região da genitália, o que inibe sua libido. É uma enfermidade que lhe apareceu pela primeira vez na infância, com os médicos vinculando sua causa a uma condição de estresse. 

Criatura: a expressão física do trauma sexual na pele.

Mas Criatura, intercalando momentos na vida da Mila criança, por volta dos 8 anos, e na adolescência, faz, de forma sagaz e insinuante, revelações de um trauma difuso que faz abrir bem os olhos e ouvidos do espectador para entendermos como se deu a construção psicológica dessa mulher adulta. Aquela que pode ser identificada como uma pessoa ‘normal’ (seja lá o que isso signifique), mas cuja saúde sexual está claramente comprometida.

Criatura é, portanto, daqueles títulos que deve virar hit entre os psicanalistas, mas não apenas entre eles, graças ao talento e coragem de Gimeno, nos entregando um trabalho sedutor e profundo, passando longe do professoral e perto do bom cinema. Atenção para a arrebatadora sequência final de purificação, claro, no mar.

EM BREVE – Críatura ainda não tem distribuição no Brasil, mas outros dois títulos exibidos ontem por aqui sim. Na ponta dos dedos (Fingernails, EUA/GB), do grego Christos Nikou, é uma produção da Apple Films (como Assassinos da lua das flores) e tem sinal aberto para ser lançado em salas de cinema. 

É o segundo longa-metragem assinado por Nikou, mas o jovem ateniense já trabalhou como assistente de direção de Yorgos Lanthimos em Dente canino e com Richard Linklater em Antes da meia noite

Conhecendo seu histórico, dá quase para afirmar que Na ponta dos dedos poderia ser uma comédia romântica do Linklater sob a atmosfera incomum do Lanthimos. 

Dá pra dizer também que Jessie Buckley é o atual e definitivamente rosto vinculado à projetos cujos roteiros sobre relacionamentos nos levam para lugares bem incomuns (vide Estou pensando em acabar com tudo isso; Men: A face do medo e A filha perdida). 

Aqui temos o casal perfeito, Anna (Buckley) e Ryan (Jeremy Allen White), e isso foi comprovado científica por uma nova tecnologia que, a partir de um exame feito por uma máquina sobre a unha de casais, aponta se os pombinhos são realmente almas gêmeas. O diagnóstico dá apenas três resultados 0%, nenhum dos dois ama o outro; 50%, apenas um dos dois ama o outro; e 100%, o amor é mútuo.

No enredo de ‘Na Ponta dos Dedos’, a narrativa investiga a dificuldade de aplicar a lógica ao amor.

Anna e Ryan ganharam seu certificado científico de amor mútuo há dois anos, mas quando ela descobre que o teste pode ser refeito, vai trabalhar, em segredo, num instituto que aplica os tais testes para tentar entender um pouco mais sobre romances. Lá começa conhece o colega Amir (Riz Ahmed, oscarizado por O som da fúria) e é quando os sentimentos da moça começam a ficar bagunçados.

À parte as cômicas situações referentes aos preparativos para o teste da unha, há o contexto incômodo do teste em si. Isto porque as unhas precisam ser extraídas sem anestesia do dedo dos pacientes. 

Na ponta dos dedos, enfim, se resolve muito bem como uma divertida comédia romântica moderna, sendo também bastante esperta em propor discussões atuais sobre aquilo que estamos carecas de discutir (sem nunca nos cansarmos disso): que, para as coisas do amor, não há ciência que dê conta.

DITADURA – Por distribuição da Paramount, vem aí mais uma bela produção argentina que joga um agudo olhar sobre os efeitos da ditadura militar vivida ali nos anos 1970 (E você, cinema brasileiro?). 

Depois do recente sucesso de Argentina, 1985 (2022), de Santiago Mitre, é a vez de olharmos para o trabalho de Daniela Goggi em O sequestro (El Rapto, 2023). 

Estamos na primeira metade dos anos 1980. Mais precisamente num avião trazendo de volta a Buenos Aires a família de Júlio (Rodrigo de la Serna, da série A casa de papel). Junto a esposa e dois filhos pequenos, ele viveu em exílio na Espanha e, neste início de redemocratização, está retornando ao seu país para reassumir o seu lugar na empresa do pai.  

‘O Sequestro’ contribui para a contínua saga do cinema argentino em explorar as cicatrizes de sua ditadura militar.

Mas o sequestro do seu irmão mais velho, logo após seu retorno, provoca mais de um ano de martírio à família, que se desdobra para bancar uma privada investigação que se revela estéril e de investimentos milionários. É um processo que arruína não apenas as esperanças de Júlio na construção de uma Argentina democrática, mas também a sua saúde mental e física.

Ao longo de O sequestro, exibido em Veneza, o filme vai nos mostrando o quão entranhado ainda está no próprio governo de Raúl Alfonsin os militares carrascos da ditatura, com eles fazendo do sequestro de políticos, empresários e jornalista um negócio rentável e difícil de desmontar num iniciante e frágil governo democrático. Assustador.

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