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Festivais

47ª MostraSP(’23) – “Sem Coração” e Joanna Arnow

Sobre o despertar do amor no paraíso perdido

Por Luiz Joaquim | 23.10.2023 (segunda-feira)

— Na imagem em destaque, “Sem Coração,” de Nara Normande e Tião.

SÃO PAULO (SP) – É muito curioso ver Sem coração (2023), de Nara Normande e Tião – exibido ontem (22) na 47ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo – tão próximo de ver Pedágio, de Carolina Markowicz (projetado aqui na sexta-feira, 20). 

Isto porque uma sequência tocante, entre as diversas criadas por Nara e Tião, mostra Fátima (Maeve Jinkings) literalmente colocando no colo a filha, Tamara (Maia De Vicq), e lhe abraçando em todos os sentidos, físico e figurativo, para acalmá-la com relação aos medos que tomaram conta de sua cabeça. 

A adolescente deve, em breve, deixar a paradisíaca praia onde sempre viveu, em Guaxuma, Alagoas, para ir estudar em Brasília. Isto a atormenta, mas não tanto quanto as recentes descobertas afetivas e amorosas que percebe sentir pela nativa Sem Coração (Eduarda Samara), filha de um pescador, e assim apelidada pelos garotos por conta de uma cirurgia cardíaca realizada ainda bebê.

E mesmo que a informação sobre qual o motivo de Tamara ter medo – por “fazer algo que nunca fez” – chegue a Fátima de maneira desencontrada da real razão desse medo, a mãe dá um recado, ao som de Maria Bethânia, que qualquer mãe deveria dar aos filhos. 

“Sem Coração” se destaca por sua capacidade de retratar, de forma criativa e autêntica, o amadurecimento do amor e a formação de caráter durante a adolescência,

A construção dessa cena chega diante do espectador apresentando-se como uma espécie de perfeição cinematográfica, quando pensamos na construção dos diálogos, no ritmo da conversa, dos movimentos e da sintonia dramatúrgica entre Maeve e a menina De Vicq. 

Faz pensar que a mãe Sullen (Maeve) em Pedágio (ou qualquer mãe como ela, na vida real), desesperada em “consertar” a orientação sexual do seu adolescente, deveria ser amarrada na poltrona de uma sala de cinema para ver Sem coração e aprender com a mãe Fátima (também Maeve).

Para além dessa cena artisticamente pedagógica, sem ser professoral, o filme de Nara e Tião chega encantando a todos por um motivo fácil de entender. Apresenta, com notável grau de liberdade criativa a dignidade e leveza de uma fase definidora para a formação de caráter de qualquer pessoa. E isto com uma veracidade que é difícil de encontrar na nossa cinematografia atual. 

O filme, que se passa em 1996, também faz acordar o espectador sobre o habito coletivo da geração de crianças e adolescentes pré-digitais, cercados por uma natureza que os envolve em todos os aspectos; coisa que, fatalmente, fará operar uma relação distinta entre esses jovens em sua relação com o mundo. 

A silenciosa cena de Tamara quebrando o ouriço-do-mar pra comê-lo com o menorzinho do grupo de amigos, por exemplo, não é à toa. Pode soar desnecessária para o enredo, mas é o contrário. Ela diz um pouco mais, sem palavras, sobre essa menina.  

Guaxuma, com suas paisagens naturais, fornece o cenário para as vivências da adolescência em uma época que antecede a era da internet.

E não para aí. O grupo de amigos é, indistintamente, formado por Tamara e seu irmão de classe média mais os nativos de Guaxuma, incluindo aí o mais velho deles, Galego (Alaylson Emanuel, ótimo), que passou um tempo na extinta e temida Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor (Febem) por conta de um delito.

Sem coração não exime a responsabilidade de Galego pelos seus delitos, mas também reforça, pelas falas de Tamara e do próprio Galego diante da fúria violenta de seu pai, que o personagem é também uma vítima, e que a vida em sociedade é muito mais complexa para tentar resolver a formação de um jovem pela violência e segregação.

Destaque também para a trilha sonora do filme, entrando nas horas certas e estimulando a atmosfera fantástica que o enredo quer nos entregar.

Os recifenses podem ficar tranquilos pois Sem coração chegará a uma sala de cinema do Recife em menos de um mês. 

ALTERNATIVO – Sabe-se que a produção alternativa norte-americana é gigantesca e quase nada chega ao nosso mercado exibidor. Eventos como a Mostra de SP são boas portas, às vezes a única, que dão acesso a algumas pérolas desse campo.

A sensação de que o tempo de fazer algo passou (The Feeling that the Time for Doing Something Has Passed, 2022), escrito, dirigido e protagonizado por Joanna Arnow, e produzido por Sean Baker (Tangerine) é uma dessas pérolas.

Modesto em sua produção, a comédia que acompanha a vida de Ann (Arnow) tem como primeira das cinco partes uma espécie de desafio ao espectador. É um tanto claustrofóbico em seus planos internos no quarto e sala de Allen (Scott Cohen), o amante ocasional de Ann. 

A narrativa de “A Sensação de Que o Tempo Para Agir Já Passou” é abordada de maneira cômica e realizada com meios de produção modestos.

Ocasional em termos, pois a relação já dura 9 anos; ainda que não tenham nenhum vínculo fora do sexo casual e pautado pela dominação, com Ann sendo a submissa neste jogo.

Não esperem nada perturbador aqui, as brincadeiras operam mais no campo do humor e não da excitação. 

Passada a primeira parte, vamos conhecendo os outros casos de Ann e aí fica fácil perceber que uma das graças do filme está também nos micros e estáticos planos apresentados por A sensação de que…

Com a economia de, às vezes, uma fala (ou mesmo nenhuma) dentro desses diversos micro-planos, vamos entendendo que Ann quer mudar sua vida, o que envolve a sua relação com a família judia, com o irrelevante cargo que ocupa numa burocrática empresa e, talvez, aos 33 anos, começar um namoro regular.

Joanna Arnow, apresentada pela Mostra de SP, é, portanto, um daqueles bons nomes que devemos prestar atenção daqui por diante.

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