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Críticas

Assassinos da Lua Das Flores

Scorcese indo direto ao ponto.

Por Yuri Lins | 19.10.2023 (quinta-feira)

Falar sobre o novo filme de Martin Scorsese logo após assisti-lo é uma tarefa desafiadora. Este é um filme de uma estirpe em extinção, daqueles que, gostando ou não, não se pode sair ileso, e que exige um tempo para digerir e formar um julgamento. Talvez até seja necessário revê-lo uma ou duas vezes, mas façamos o melhor. Scorsese constrói seu filme com a intenção de resgatar a história esquecida por meio das ferramentas do cinema e, dessa forma, aborda a narrativa como uma exposição da tragédia sem os véus do mistério. Explico.

Baseado no livro de David Grann, “Assassinos da Lua das Flores” narra os brutais assassinatos de membros da rica tribo Osage na década de 1920, cuja riqueza provinha da descoberta de petróleo em suas terras em Oklahoma. A trama revela como a ganância de criminosos, políticos e agentes do governo desencadeou uma série de assassinatos misteriosos, levando o FBI a se envolver na investigação.

O filme se inicia com uma longa e solene cena de um ritual fúnebre Osage, falado na língua nativa. A gestualidade e sonoridade dos homens e mulheres envolvidos evocam um mundo coeso com séculos de cultura sedimentada. Em um corte abrupto, a cena muda para uma imagem de um jorro de petróleo brotando da terra, com indígenas dançando ao redor. Uuma promessa de prosperidade, mas também abre a porta para a tragédia.

Em seguida, emulando os antigos cinejornais, que eram notícias de atualidades exibidas nos cinemas, recriados com uso de preto e branco e as tipografias típicas da época,  a história da ascensão econômica dos Osage é narrada de forma didática. Em 1870, o governo dos Estados Unidos forçou os Osage a se mudarem para o território de Oklahoma, uma traição, uma vez que a terra era pouco fértil. Em 1906, a história dos Osage muda drasticamente com a descoberta de uma imensa reserva de petróleo na região, tornando-os o povo mais rico per capita do mundo na década de 1920. 

A história do povo Osage foi negligenciada nas grandes narrativas, e seus registros históricos, incluindo registros visuais, são escassos. Scorsese, ao reconstruir essas imagens com uma estética que evoca o passado, parece reforçar de maneira concreta o poder restaurador do cinema, resgatando o que foi apagado. No entanto, a abordagem é feita de forma bastante explícita, o que transmite claramente a intenção do cineasta, mas também evidencia uma certa literalidade do artificio.

No meio do turbilhão de informações, o filme introduz seu protagonista, Ernest Burkhart (Leonard DiCaprio), que retorna da guerra em busca de auxílio de seu tio fazendeiro, William Hale (Robert De Niro). A introdução dos antagonistas é direta; desde a primeira conversa, Hale já evidencia seu ressentimento pela riqueza do povo Osage. Uma montagem paralela mostra o cotidiano do povo nativo e, ao mesmo tempo, revela que eles estão sendo assassinados. Enquanto a conversa entre Leonard e Hale se desenrola, essa montagem retorna diversas vezes, enfatizando a divisão de dois mundos. As cartas estão na mesa: Hale apresenta ao seu sobrinho a possibilidade de ele se relacionar com uma Osage, Molly (Lilly Gladstone) visando se  apropriar da herança e mantê-la na sua família branca. 

Na cidade de Fairfax, uma conspiração busca o gradual apagamento do povo Osage. Toda a estrutura social está corrompida com esse objetivo. Médicos alteram corpos e certidões de óbito, reescrevendo a história conforme necessário. A polícia encobre suas investigações, manipulando as cenas dos crimes e usando a retórica para manter a narrativa existente. Homens brancos se aproximam de mulheres Osage, casam-se com elas e não demora muito para que essas mulheres apareçam mortas. Até mesmo os agentes funerários cobram preços diferentes, mais elevados para os Osage e mais baixos para os demais. Essa estrutura de morte se esconde sob uma fachada de condescendência, liderada por Helm.

A frontalidade com a qual Scorsese aborda a dissimulação de Helm e o cotidiano violentado dos Osages elimina qualquer possibilidade de esconder os vilões do filme. Em uma cena, vemos Ernest lendo em voz alta a pergunta: Can you find the wolves in this picture?, presente em um livro sobre os Osages dado por seu tio para que ele se introduza na cultura. Os lobos em “Assassinos da Lua das Flores” já não estão mais disfarçados como cordeiros. Portanto, cabe ao filme evidenciar o processo por trás de uma tragédia esquecida, posicionando cada personagem em seus devidos lugares, fazendo-os agir do mesmo modo.  Dessa forma, o filme adquire um tom de purgação por meio da restituição, onde tudo o que compõe uma tragédia é destituído de sua imprevisibilidade ou ambivalência. Não há suspense ou elementos inesperados; todo o horror se desenrola no tempo presente e no campo daquilo que pode ser visto, como se a narrativa cinematográfica agisse como um purgatório circunscrito em si,  e o que emerge desse espaço é a informação daquilo que nunca foi visto antes, mas que agora adquire um novo corpo. 

Uma demonstração clara dessa abordagem formal está na forma como Scorsese retrata os assassinatos dos homens e mulheres Osages no filme. Ao contrário de suas obras anteriores, como “Os Bons Companheiros” ou “Os Infiltrados”, que empregam explosões de violência e cortes rápidos na montagem, aqui, a direção assume uma postura de observação distante, quase científica, em relação ao ato de matar. Os assassinatos são frequentemente filmados em planos gerais ou planos médios fixos, revelando com clareza a posição da vítima e a aproximação do assassino, mantendo seus rostos sempre visíveis. O espectador acompanha meticulosamente os segundos que precedem o golpe fatal, sem quaisquer estilizações ou firulas. O resultado é uma representação crua e direta, onde a câmera captura a totalidade do ato. Informação pura.

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