A Linha
Neurodivergentes em tempestades de ira
Por Ivonete Pinto | 10.12.2023 (domingo)
Filmes como A linha (La Ligne, Suiça, França, Bélgica, 2022) nos provocam mil e uma ideias já nos primeiros minutos. Os créditos iniciais e a cena de abertura são em slow motion e esse elemento da linguagem não está ali como enfeite de ostentação. Com a trilha operística da cena, anuncia suas intenções narrativas, proporcionando alusão à sequência final de O sacrifício, de Andrei Tarkovsky, filmado na Suécia em 1986.
Lançado no Festival de Berlin do ano passado, vê-se logo que A linha mira longe, correndo o risco do pedantismo. Mas a referência ao diretor russo, o público pode ou não fazer, de acordo com seu repertório e o voto de confiança do momento. Ela é pertinente, não para em si elevar o filme da diretora Ursula Meier à condição de obra-prima, apenas para concatenar elementos presentes no cenário e na atmosfera. Além do recurso do slow, há a neve, a corrida em desatino, em um país rico europeu e um personagem afetado pela loucura. Atualizando “loucura”, diríamos que é um distúrbio neurodivergente. Se em Tarkovsky tínhamos a ameaça da bomba atômica como pano de fundo, em A linha temos as doenças mentais do nosso século.
Na referida cena de abertura, Margaret (Stéphanie Blanchoud) ataca a mãe com violência e a partir dali é obrigada a manter uma distância de 100 metros da casa da família durante três meses. Se descumprir a ordem, será presa, já que é uma medida restritiva imposta pela justiça. A família é composta também pela mãe Christine (Valeria Bruni Tedeschi), a filha do meio Louisi (India Hair), a adolescente Marion (Elli Spagnol) e o marido de ocasião da mãe. Após o surto, a irmã mais jovem de Margaret pinta uma faixa azul em volta da casa para evitar o descumprimento da ordem. Ocorre que os problemas disfuncionais não são exclusividade da irmã violenta.
A neurodivergência é um termo tão amplo que abarca da bipolaridade ao autismo, do esquizofrênico ao borderline. Dentro de cada espectro há vários outros, o que torna difícil o diagnóstico. Convivemos desde sempre com este problema, embora nos últimos anos, com as noias das redes sociais e, talvez, de modo mais acentuado depois da pandemia, temos casos pululando a nossa volta. Instituições de ensino, empresas, família, ninguém escapa. O filme, neste sentido, é muito bem-vindo por discutir um assunto tão urgente.
Por enfatizar os desdobramentos do drama numa célula familiar, no quadro de referências não há como deixar de lembrar de Ingmar Bergman e seu Sonata de Outono (1978). O que pode fazer uma mãe egoísta, infantil e mal resolvida? A mãe de A linha é menos densa, ainda que vivida com energia por Valeria Bruni Tedeschi. A mãe interpretada por Ingrid Bergman era uma pianista de renome internacional que humilhava a filha pianista mediana (Liv Ullmann). A mãe de A linha foi pianista que fez sucesso e agora vive de ressentimentos. A filha Margaret é cantora e compositora, aparentemente medíocre frente ao talento da mãe. E o diálogo com Bergman se encerra aqui.
Irresponsável com as três filhas, Christine detesta Margaret porque esta, ao vir ao mundo muito cedo, teria lhe inviabilizado a carreira de pianista e lhe tirado a liberdade. Diante deste estereótipo de personagem que joga a culpa do fracasso nos filhos, suspeita-se que o filme foi pelo caminho mais fácil ao “explicar” a origem da violência da filha, manifesta por explosões de fúria.
Cada obra é uma leitura de seu tempo e permanece de acordo com suas potencialidades de atualização. O que diferencia este filme de outros que abordaram o tema? Provavelmente a questão da neurodivergência e de como encaramos estes desvios de conduta para os quais não estamos preparados. Como encaramos a norma ou o que pode ser lido como norma.
No final das contas, medindo expectativa e resultado final, fica-se no meio em relação a A linha. Há momentos de intensidade dramática dirigidos de forma segura. Há desempenho irretocável das quatro atrizes que conduzem o filme (a mãe e suas três filhas). E há um tema cuja importância nunca acaba.
No entanto, a opção por elucidar o distúrbio como tendo origem na mãe problemática, simplifica as coisas. A diretora Ursula Meier assina o roteiro com a atriz principal Stéphanie Blanchoud e com Antoine Jaccoud . Roteiro que soa como fruto de muitos consultores que opinaram aqui e ali, buscando dar complexidade aos personagens, criando camadas e mais camadas de conflitos (por exemplo, a religiosidade da filha adolescente é como se tivesse caído do céu, sem trocadilho, e voltado para onde veio), não deixando muito espaço para a leitura do espectador.
A incapacidade de Margaret controlar suas “tempestades de ira” ─ expressão contida na letra da música composta por ela ─, prometeu mais do que cumpriu. O filme não parece acreditar que nem sempre famílias disfuncionais geram pessoas fora de controle.
Pelo sim, pelo não, vale conferir a proposta de A linha, ao menos para admirar a atuação das ótimas atrizes. E pensar nesta frase inspirada dita pelo amigo da protagonista: de que adianta fazer curativo no ferimento, se não dá tempo para cicatrizar?
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