Celso Marconi (1930-2024)
O jornalista faleceu em Olinda, aos 93 anos, deixando um imenso legado cultural iniciado nos anos 1950.
Por Luiz Joaquim | 02.01.2024 (terça-feira)
“Recordar é viver”, diz o cineasta Jorge Furtado pela voz de Paulo José no mais famoso curta-metragem já feito no Brasil, o Ilha das flores (1989). Rememoro a assertiva no dia de hoje, 2 de janeiro de 2024, quando damos adeus a Celso Marconi Lins, aos 93 anos de idade, porque as melhores lembranças que carrego comigo do gigante crítico de cinema e de artes plásticas, curador, professor e realizador cinematográfico são a sua pura tradução.
Internado no hospital Esperança Olinda, Celso veio a óbito às 23h pelo declínio da capacidade intrínseca associada ao envelhecimento. Em outras palavras, Celso não estava doente, nos deixou pela velhice avançada. Seu velório será no ‘Morada da Paz’, iniciando ao meio-dia de amanhã (terça-feira, 3) com o sepultamento às 17h.
Em 2019 tive a felicidade de me reaproximar de Celso por uma missão profissional. Levantar dados para escrever sua biografia sob pedido da editora CEPE, dentro da coleção Perfis. O livro Celso Marconi: O senhor do tempo teve como cerimônia de lançamento uma entrevista online, em agosto de 2020, em função do então isolamento social imposto pela pandemia da covid-19 (veja aqui).
O trabalho de pesquisa incluiu 32 encontros, dos quais 14 foram exclusivamente com Celso, em sua casa, no Bairro Novo, Olinda. Por aqueles encontros resgatamos, em longas conversas que duravam entre 90 e 150 minutos – conforme a disposição de Celso – as suas primeiras memórias da infância até os detalhes de sua rotina em 2019.
Durante aquele processo eu já percebia a intensidade única daquele momento. Era claro para mim o tamanho do privilégio de desligar a chave do meu mundo por cerca de duas horas para entrar pela porta da frente no mundo de Celso Marconi.
Ouvir as histórias de vida de Celso era ouvir, com riqueza de minúcias e de maneira personificada, sobre as transformações do jornalismo, da cultura nacional, da cidade do Recife e do mundo em sua complexidade política nas últimas nove décadas. Nove décadas!
Inquieto e “diferente” desde a juventude, o filho da farmacêutica Guiomar e do engenheiro Severino Lins, nasceu em 23 de agosto de 1930 (o ano da Revolução, como ele gostava de dizer), e perdeu a mãe três anos depois, fato este que lhe marcou por todo o sempre, levando-o a morar com a tia Lourdes em Vitória de Santo Antão, ainda na adolescência, para, depois, ir com o pai a Paraíba. O fantasma da perda de Guiomar, para a tuberculose, o revisitou dramaticamente nos últimos anos de sua vida. Não eram poucas as vezes que Celso falava com comoção da mãe como o seu primeiro amor.
Na juventude, longe da profissão do pai, tentou estudar Medicina, mas um professor o alertou para cursar Direito. Frustrou-se aí também, quando foi sumariamente reprovado na seleção, e encontrou a sua praia, finalmente, no curso de Filosofia. Para ele, se colocarmos na conta o seu já natural modo irrequieto e questionador, estudar na Faculdade de Filosofia de Pernambuco seria como ir a um parque de diversões do intelecto. E assim foi entre os anos de 1953 e 1955.
Mas, mesmo antes de ingressar na faculdade, Celso já era um nome presente no jornalismo pernambucano e na atuação de cineclubes locais. Em janeiro de 1953, de mãos dadas com o eterno comparsa, Jomard Muniz de Britto, organizou o lendário cineclube Vigilante Cura fora de um ambiente escolar, exibindo e debatendo Desencanto, de David Lean.
Em maio do ano seguinte, assinando como João do Cine para o comunista Folha do Povo, estreou num jornal como analista cinematográfico, tecendo a crítica de Agulha no palheiro, de Alex Viany. Mas antes de firmar o nome ‘Celso Marconi’, em junho de 1962, como crítico de cinema na sucursal nordestina do Última Hora, do Samuel Wainer, muita água correu em sua carreira jornalística.
Passou pelo Jornal Pequeno e pelo Diário de Pernambuco, onde cobriu política e também perseguia celebridades que davam o ar da graça no Recife, como o escritor Jorge Amado, a atriz italiana Gina Lollobrigida ou o navegador português Gago Coutinho, entre tantos outros importantes. A sua atuação na editoria de Política também o levou a assumir um cargo na diretoria do Sindicato dos Jornalistas de Pernambuco, o que o habilitou a fazer uma impressionante viagem internacional por quase dois meses, no final de 1960, representando a imprensa local na China, URSS, Alemanha oriental, França e outros países no velho mundo. Esse é um capítulo de sua vida que renderia um livro inteiro e robusto.
A impressionante viagem viria a excitar, quatro anos depois, a curiosidade burra e a fantasia nefasta dos militares que prenderam Celso em junho de 1964, por longos quatro meses, após o Golpe Civil-militar no Brasil daquele ano. A essa altura, Celso já era pai de Pedrinho (1957) e Luiz Cláudio (1962) com a esposa Maria do Carmo Lins, com quem veio a ter também Isabela (1967).
No final de 1964, ainda que liberado das grades, Celso era mantido preso nas teias dos militares, tendo entrado numa lista proibida que o impedia de ser contratado por qualquer jornal. Foram anos desesperadores até o amigo Fernando Spencer estender a mão e abrir, corajosamente, a sua página de cinema no Diário de Pernambuco para o trabalho de Celso. O fruto gerou outro, como foi o convite de Vladimir Calheiros, editor do Jornal do Commercio (Recife), para Celso escrever uma retrospectiva sobre o cinema brasileiro de 1965.
De tão bem impressionado, Calheiros, com a anuência dos milicos, conseguiu contratar Celso para assumir a titularidade da crítica de cinema do veículo em 1966 e para editar as páginas do jornal com notícias do interior do Estado.
No Jornal do Commercio assumiu sozinho (apurando, escrevendo, editando) a criação de um caderno de cultura que viria a ser referência no jornalismo local, o Cadeno C. Ali atuou até 1986, e, retornando brevemente em 1989, encerrou uma trajetória de mais de 20 anos só naquele veículo.
Pode-se dizer que, como jornalista do Jornal do Commercio, são incontáveis os nomes de artistas fundamentais da cultura local, no campo da música, do cinema, de artes plásticas e cênicas que foram agraciados pela leitura crítica (e também promotora) de Celso Marconi para ascenderem ao estrelato. De Alceu Valença a Naná Vasconcelos, Celso foi um descobridor de talentos e era sinônimo de sofisticação e coragem intelectual pelos seus textos.
Nas loucas festas no final dos loucos 1960s, em sua residência, passaram Caetano Veloso, Glauce Rocha, Robertinho do Recife, entre tantos. Todos eram ciceroneados por Jomard, o amigo que comprou publicamente o entrevero entre Celso e Ariano Suassuna, iniciado pelas críticas do jornalista para a primeira e equivocada adaptação cinematográfica de A compadecida (1969), dirigida por George Jonas.
Após a saída do Jornal do Commercio, o jovem Celso, então com 61 anos, assumiu outro projeto de porte: assinar a editoria do mensal Suplemento cultural, publicado pela Cepe. A ligação com a Cepe, do Governo do Estado, o levou a atuar também na organização das primeiras edições do Festival de Inverno de Garanhuns, hoje consolidado nacionalmente, indo para a sua 32ª edição em 2024. Isso sem contar, também em 1991, com o início da sua gestão do Museu da Imagem e do Som de Pernambuco, o Mispe, que o levou a criar o Cine Ribeira, no Centro de Convenções de Pernambuco, em 1993. A salinha de 210 lugares ajudou a moldar a cinefilia de diversos recifenses, inclusive este que aqui escreve.
A experiência de Celso como curador é também um capítulo à parte. Iniciou nos cineclubes dos anos 1950 e, a partir de 1962, gerou o mais prolífico e influente circuito exibidor de filmes autorais que o Estado de Pernambuco viu no século 20. Ao lado de Fernando Spencer, Celso criou o projeto comercial Cinema de Arte, que introduziu Fellini, Kurosawa, Antonioni, Godard, Bergman, Pasolini e Truffaut (só para ficarmos nos hoje óbvios) a diversas gerações locais. Do Cine São Luiz (que ficou pequeno para o sucesso do projeto) ao colossal Cine Coliseu e chegando ao Cineteatro do Parque, tínhamos o melhor do cinema moderno mundial que a dupla Celso-Spencer apresentava à sociedade pernambucana. E olha que não falamos da produção de Celso como realizador superoitista nos 1970s, quando dirigiu cerca de 20 curtas-metragens no formato amador.
Tendo atuado também como professor de comunicação na Universidade Católica de Pernambuco na década de 1980, a vida de Celso foi igualmente intensa no campo pessoal. Após a separação de Maria do Carmo, uniu-se a Tereza Lins, com a qual trouxe ao mundo Manuela (1979). Depois, já separado de Tereza, assumiu um novo romance ao final dos anos 1990, ao lado de Trudy Keusen.
Para além do romance, do carinho e do amor, Trudy viria a se tornar, ao longo do tempo, o braço direito e esquerdo do então companheiro, até o fim de sua vida.
Uma vida em constante busca por um sentido pela arte que, revista hoje, parece inacreditável em suas tantas realizações e influências definidoras para a cultura pernambucana. Celso deixa algumas, com o plural em destaque, gerações de órfãos, eternos devedores das lições que nos legou.
O jornalista/artista conheceu pessoalmente Che Guevara, Mao Tse Tung, Maysa, Miguel Arraes, Assis e Fernando Chateaubriand, Jânio Quadro, Jango, Paulo Freire, Glauber Rocha, Chico Buarque, Caetano Veloso, José Carlos Avellar, Moniz Vianna e tantos outros enormes.
E eu tive o privilégio de também conhecer todos eles ao entrar pela porta da frente no mundo de Celso Marconi.
Obrigado, Celso. Siga em paz levando a sua sagacidade crítica e a simpatia do seu “sorriso do gato de Alice”, conforme descreveu Jomard, para os outros talentos que o esperam no outro plano.
0 Comentários