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Críticas

Ferrari (Texto 2)

O longo sacrifício

Por Yuri Lins | 22.02.2024 (quinta-feira)

 – Contém spoilers

Em Ferrari (EUA/RU/ Ita./Chi., 2023), novo filme dirigido por Michael Mann, duas sequências destacam-se por revelar as suas intenções: a primeira ocorre durante uma missa voltada para os trabalhadores da cidade de Módena, na Itália, onde as fábricas de automóveis compõem a sua vida social e econômica. Diante de uma plateia composta principalmente pelos operários dessas indústrias, incluindo, também, o próprio patrão Enzo Ferrari (interpretado por Adam Driver), o padre faz um sermão que alinha o passado de trabalho de Jesus com a realidade atual. Cristo, se vivesse na era dos automóveis, não teria o dom de trabalhar a madeira, mas, sim, seria um forjador, moldando o ferro e o aço para criar as máquinas velozes que impulsionam o desenvolvimento de sua nação.

Saturno Devorando um de seus Filhos, 1820-23, de, Francisco de Goya.

Nessa sequência, Mann entrelaça o sermão com imagens de testes de corrida da Ferrari, em que a busca pelo recorde de velocidade é imperativa. No clímax dessa montagem paralela, o minuto de silêncio de uma reza obstinada ecoa o mesmo silêncio daqueles que contemplam o cronômetro que marca o tempo atingido pelo carro. Há uma nova metafísica anunciada nas entrelinhas do sermão: no novo século industrial, o corpo será o aço dos chassis da máquina perfeita, o sangue será equivalente à gasolina que explode nos motores, e a velocidade alcançada, desprendida do medo da morte, será a transcendência máxima do espírito. É essa a crença que parece balizar as obsessões do magnata Enzo Ferrari na busca pela perfeição de suas corridas, em que a imortalidade de seu império será alicerçada com os triunfos nas pistas. A certo ponto, quando um de seus corredores morre ao tentar ultrapassar o limite estabelecido por ele, será chamado pela imprensa de “Saturno que devora os filhos”, em alusão ao deus romano do tempo e das colheitas, mas também dos ciclos de destruição.

Na segunda sequência de interesse, uma briga intensa irrompe entre Enzo e sua esposa, Laura Ferrari (interpretada por Penélope Cruz). Laura acaba de descobrir que Enzo levou uma vida dupla por mais de uma década, mantendo um relacionamento com outra mulher e tendo gerado uma criança fora do casamento. O filho adulterino revive o trauma do casal,  cujo  primogênito, Dino Ferrari, morreu jovem devido a uma grave distrofia muscular. No auge de sua raiva, Laura culpa o marido pela morte de seu filho, acusando-o de não ter usado todo o seu poder para salvar o herdeiro.  Enzo, por sua vez, defende-se descrevendo minuciosamente cada conhecimento médico adquirido durante a doença. Obsessivamente, detalha o nome de cada músculo atrofiado, cada medicamento e cada termo científico do tratamento. Enzo descreve o corpo do filho como se estivesse esquadrinhando as peças de um motor. Ele afirma categoricamente: ‘Agora sei mais sobre a doença do que sobre carros’. Ferrari pode possuir muito poder, mas nunca será o suficiente.

Enfrentando uma crise financeira em sua fábrica, ele reconhece a necessidade de buscar um sócio para garantir sua continuidade. No entanto, ciente da importância de manter sua reputação, ele entende que a vitória de sua equipe de corredores no campeonato das Mille Miglia é crucial para sustentar seu valor no mercado. Após a morte do piloto no acidente, ele rapidamente o substitui por um novo, o belo Alfonso de Portago (interpretado pelo brasileiro Gabriel Leone), que será pressionado para ir além das próprias limitações. Ao menor sinal de hesitação de sua equipe, Ferrari está pronto para, como um pai decepcionado, censurar a falta de desempenho dos filhos, e estes, por sua vez, entregam-se à combustão desse desejo, mesmo diante de uma ordem suicida. Jogar dados com os destinos daqueles que estão sob sua autoridade talvez seja o poder que o homem verdadeiramente possui, à semelhança das divindades. 

A juventude pronta para ser sacrificada.

Com Ferrari, será comum encontrar textos quem busque as características marcantes de seu diretor; muito se discutirá sobre suas cenas de corrida, o ritmo alucinante de sua montagem e o design de som avassalador. Cada um desses elementos será elogiado de modo legítimo, pois tocam naquilo em que Michael Mann é mestre absoluto. No entanto, esse pode ser o filme em que a ação, ou a excelência técnica, sejam fatores menos determinantes naquilo que ele possui de mais potente. Sua verdadeira força, o que mais fascina, está justamente em ser, em um conto de carros e pilotos, a execução longa e paciente de um ritual sacrificial, como nos tempos antigos, em que reis oferendavam os efebos de seu reino para manter os alicerces de seu poder. Em Ferrari, os jovens são sacrificados para que os mais velhos possam ascender.

 Listamos: Dino, o primogênito, recebeu um túmulo palaciano erguido por seus pais. O piloto morto durante o treino, rapidamente substituído, foi precificado em 25 mil dólares, destinados à sua viúva.  De Portago perde a vida nas Mille Miglia, deixando para trás um rastro de corpos dos espectadores atingidos pelo metal incandescente de seu carro. Entre essas vítimas, uma criança, que, ao assistir à corrida pela TV, correu para ver a ficção se tornar realidade por um breve momento em seu jardim. Não é ao acaso que o piloto vencedor da corrida será o mais experiente, aquele de cabelos brancos e rosto sulcado por uma vida nas pistas, sobrevivente do poder ceifador e já velho demais para morrer de forma prematura: resta a ele a vitória, seguir vivendo laureado enquanto os que floresceram foram ofertados.

Em ‘Ferrari’, só os velhos triunfam.

Jesus poderia ter nascido no século XX como um operário, mas sua crucificação ainda seria executada por homens que se veem mais poderosos do que realmente são. Não é Enzo Ferrari quem se torna um deus devorador do tempo, mas sim o próprio dinheiro.  Esse, sim, é o catalisador das dores e das delícias, do qual Enzo será apenas um acólito. Ainda que um empresário poderoso, ápice de sua época, Ferrari é apenas um homem, limitado por essência, incapaz de controlar tudo, um Prometeu que, tendo dominado o fogo, forjou seu próprio Olimpo e agora contempla a própria pequenez.

Apesar de terem triunfado na corrida crucial, o acidente que vitimou de Portago e civis desencadeia uma crise capaz de arruinar tudo o que foi construído. Enquanto isso, Laura detém o dinheiro que poderia salvar o império Ferrari. Sua proposta é clara: oferecerá o dinheiro com uma condição – que Piero, o filho ilegítimo, não seja reconhecido com o sobrenome Ferrari. O acordo revelará a verdadeira estirpe de Enzo: ao aceitá-lo, ele condicionará Piero a não possuir o nome que lhe é de direito, excluindo-o do legado e relegando-o à margem da história. Traidor da própria carne e sangue, mortal sem a paciência de Jó, Enzo aceita os termos do contrato. 

Aqui está o arremate brilhante da cena final, um dos mais incríveis concebidos por Michael Mann: com o acordo consumado, Enzo e Piero visitam o suntuoso túmulo de Dino; o pai discorre sobre a vida que os irmãos poderiam ter compartilhado juntos, dissimula uma ideia de família para confortar o excluído. Em um plano amplo da entrada do túmulo, os passos do pai e do filho se estendem para além da porta. Neste momento, Mann cria o símbolo de um destino: o túmulo do primogênito se transforma em um altar de sacrifício para o bastardo.

Ferrari que devora seus filhos. 

 

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