Dias Perfeitos
Wenders e seus dias felizes
Por Humberto Silva | 10.03.2024 (domingo)
Wim Wenders é um diretor que ocupa lugar especial em meus afetos. Não escreveria sobre ele sem ser contaminado pelo que seus filmes me provocaram em meus anos de juventude. Paris, Texas (1984) me fez abrir os olhos para um diretor que depois vim a saber representativo do Novo Cinema Alemão. Wenders pontua entre os ídolos que marcaram meus anos de formação na arte cinematográfica.
Há muito, contudo, não vejo seus filmes. Sinal da passagem dos anos: o último Wenders para mim foi Tão longe, tão perto (1993). O que ele fez depois, acompanhei de soslaio, exceção a Buena Vista Social Club (1999). Fico então com uma impostura histórica: meu tempo com ele é o de longa duração, numa alusão indevida à Escola dos Annales… O mais recente dele pelo qual passei desinteressadamente os olhos foi Pina (2011). Uma espiada rápida em sua filmografia de dez anos para cá e até os títulos me escapam se os vi em algum momento…
Os primeiros contatos com Dias perfeitos, seu filme japonês na corrida pelo Oscar, não me despertaram qualquer curiosidade para vê-lo. Mas, nesse mundo interativo de redes sociais, fui tragado por postagens de críticos que respeito muito: Carlos Alberto Mattos e Sergio Moriconi. Carlinhos em seu blog (leia aqui), depois reproduzido em rede social, pôs seu texto ao lado do de Moriconi – ele ácido com respeito ao filme; Moriconi melífluo. Na postagem, o que mais me chamou a atenção: o reboliço com defesas e ataques à fita (se os embates de ideias, as disputas em torno de uma obra fílmica, seguissem o caminho civilizado propiciado por Carlinhos viveríamos em céu de brigadeiro…).
Dessa forma, o impulso para eu ver Dias perfeitos foi dado pela postagem de Carlinhos em rede social. Um alerta necessário: nem de longe tenho aqui intenção de cavar trincheira; mas tão só expressar como vi Wenders novamente depois de tantos anos.
A fita em si. Tendo o olhar viciado pela marca Wim Wenders, vi nela o diretor do Novo Cinema Alemão que me arrebatou em um passado distante. As inquietações, angústias existenciais, o isolamento, o ar blasé, melancólico de sua filmografia que me é familiar, assim como o uso evocativo da trilha musical (Rock, Pop; Lou Reed lhe dá o título), se repetem de modo a que eu reconheça o Wenders que conheci. A procura por algo indefinido, o goleiro diante do pênalti, a peregrinação com Alice na cidade, o encontro com suicida potencial no decurso do tempo, o movimento em falso, o amigo americano, se permutam no protagonista de Dias perfeitos.
Sendo o filme visto isoladamente, sem a marca, digamos, autoral, sugeriria o indefectível ato de fala gostei ou não gostei. Não me coloco essa indagação, em si si vaga, para qualquer filme que eu veja; mas, no caso, melhor: não parto dessa premissa – gostar ou não – ao ver que os créditos anunciam um filme de Wim Wenders. Com os créditos, portanto, procuro reconhecê-lo. E, efetivamente, o reconheço em Dias perfeitos.
Claro, para mim, nessa história de “longa duração”, a oportunidade de novamente ver Wenders. Para muitos, no entanto, bombardeados pela incessante publicidade de um oscarizável, um filme de título otimista: Dias perfeitos, em relação ao qual em casas de apostas se aposta se vai ou não ganhar o cobiçadíssimo prêmio de melhor filme internacional (inquiri alunos de cinema e para os inquiridos Dias perfeitos é um filme…; Wenders? Estão descobrindo…; talvez um dia descubram…; talvez Wenders, Dias perfeitos, para eles seja, entretanto, mais um na lista, nas listas e listas de todos anos…).
Assim, pois com Wenders me movo na história de “longa duração”, não desligo Dias perfeitos de minha pequena história, a história de meus afetos; tampouco desligo a importância de Wenders para a grande história do cinema. É, para mim, um filme menor em sua longeva e profícua carreira? É, assim enxergo, um Wenders seguro e cônscio do que ele é e representa na história; na mesma medida, um Wenders cansado e sibilinamente feliz.
Explico: vejo em Dias Perfeitos pleno domínio e consciência do que é feito: a monotonia cansativa e sibilinamente feliz retratada pelo protagonista é a mesma monotonia cansativa e sibilinamente feliz do ato de filmar. Ou seja, Wenders acorda, vai para o set de filmagens, repete mecanicamente os mesmos gestos, encontra uma ou outra pessoa com quem conversa de passagem, depara-se com um ou outro entrevero de ocasião, e assim repete o expediente no dia seguinte…
Dias Perfeitos não é um Wenders maior ou menor – nunca encontrei critérios rigorosos para fazer uso desses cacoetes críticos, que para mim se assentam no conforto da superficialidade… –, mas para os meus olhos um Wenders envelhecido e cansado e que mesmo assim continua bastante ativo e sibilinamente feliz. Alias, indagaria, que expectativas eu teria? Que ele me arrebataria e apontaria as novas bases para o Novo Cinema Alemão no Japão? Tendo perdido a ingenuidade panglossiana há tanto tempo, não esperaria tanto; não esperaria outra coisa além de novamente ver Wenders.
Sobre o Japão, aliás – repetindo cansativa e propositalmente o advérbio aliás –, me ficam inquietações de fundo sobre Dias perfeitos. O Japão é omnipresente no filme. Está em sua produção (Master Mind Limited e Spoon Inc.), nas locações, na cidade de Tóquio, na Tokyo Sky Tree – a torre mais alta do mundo –, nos toiletes, no modelo dos carros que circulam em longas e largas avenidas e sobre viadutos com duas ou três pistas sobrepostas, nos personagens, nos hábitos culturais, na língua falada pelos personagens (em momento algum alguém se comunica em inglês…).
Dias perfeitos, não resta dúvida, é um filme japonês. Tão japonês que foi indicado ao Oscar pelo Japão… Pois é, esse um dos mistérios da cena cultural na aldeia global. Fiz enorme esforço para enxergar o Japão ao ver inúmeras vezes a Tokyo Sky Tree, mas ao pensar em Wenders enxergava Berlim e o Portal de Brandemburgo em Asas do desejo (1987).
Cinema é coisa séria, muito séria; o poder das imagens está justamente naquilo que elas sugerem além de sua visibilidade imediata. Provavelmente cioso quanto a isso, Wenders exibe exaustivamente a Tokyo Sky Tree ao fundo e em torno dela a movimentação cotidiana de um protagonista que quase não fala. O fator língua, o domínio do japonês, é o dado que mais me surpreendeu em Dias perfeitos. Por suposto, há um personagem contido, sereno, discreto, sóbrio, que de algum modo nos faz ver a imagem caricatural de um japonês zen. Mas também me parece o enorme cuidado de Wenders para com o uso de uma língua que lhe poderia trazer mal-entendidos… (o roteiro foi escrito em parceria com Takuma Takasaki, a quem Wenders agradece nos créditos finais).
Dias perfeitos. Perfeito é aquilo que é acabado em si mesmo. Portanto, do qual não se exige reparo. O perfeito é, por definição, completo: dele não se tira nada; igualmente, nada nele se põe. O dia é perfeito quando este se realiza plenamente. Com sua formação em filosofia, Wenders sabe bem isso. Os dias do protagonista em Dias perfeitos se repetem à perfeição. Seu cotidiano em suas mais prosaicas ações – aparar o bigode, olhar para o sol que se abre na aurora, ouvir música em sua Van, comprar um livro num sebo… –, seus sonhos com imagens imprecisas, sua leitura de Palmeiras selvagens, de William Faulkner (em edição japonesa, pois), antes do sono, se repetem sem alterações.
Claro, claro, claro… esses são elementos, digamos, diegéticos. Externos a eles, o que não se mostra, a imperfeição. Até onde minha memória alcança, não tenho agora em mente um título de filme tão irônico: nos dias perfeitos de Dias perfeitos o Movimento em falso (1975): não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, Heráclito, nem usamos o mesmo toilete duas vezes; mas, em nossa ilusão, o rio é o mesmo rio e o toilete o mesmo toilete. E isso, a ilusão, desde Georges Méliès, é própria ao cinema.
0 Comentários